Quem paga a conta do desmatamento somos nós

Rafael Araujo
O que está desmatado na Amazônia já é suficiente para garantir o aumento da produção de alimentos. Destruímos os serviços ambientais de áreas enormes e não colocamos absolutamente nada no lugar

É comum em discussões ambientais que a Amazônia seja reduzida a um estoque de carbono, tendo como o objetivo da sua preservação evitar a emissão de gases do efeito estufa que geram consequências globais. No entanto, a floresta provê muitos outros benefícios que afetam primordialmente os brasileiros. A floresta amazônica abriga quase 400 bilhões de árvores 1. Embora seja difícil enxergar as proporções continentais da Amazônia apenas com números, podemos combiná-los com a nossa imaginação para apreciar o papel que todos esses seres desempenham em nossos afazeres cotidianos. A cada dia, cada árvore busca a sobrevivência, esticando os galhos em busca de luz e esticando as raízes em busca de água. Por milhões de anos essa foi uma fórmula de sucesso, que manteve a floresta onde ela está. Nesse processo de sobrevivência, cada árvore nos presta um favor, ou ainda, um serviço ambiental: nos provê água.

As árvores recuperam água do solo e transpiram, devolvendo à atmosfera a umidade que tinha inicialmente chegado como chuva. Os ventos transportam essa umidade formando enormes rios voadores, descarregando em forma de chuva quantidades superiores à vazão do próprio rio Amazonas, afetando as chuvas em uma escala continental. A Amazônia afeta a chuva dos produtores de soja no Mato Grosso e dos produtores de cana-de-açúcar em São Paulo. Afeta a chuva que determina a navegabilidade do rio Paraná e suas hidrelétricas. Afeta outros países que nem possuem a Amazônia em seu território 2.

Uma implicação desse sistema climático é que o desmatamento diminui as chuvas em escala continental. A cada árvore desmatada é como se destruíssemos uma enorme bomba d’água, responsável por regular uma fração da chuva em algum lugar da América do Sul. A floresta, que sobreviveu por milhões de anos, vem sendo desmatada a passos largos em um espaço de poucas décadas, 17% 3 da floresta amazônica já foi colocada abaixo, e o desmatamento leva consigo a nossa água.

Mais transparência nas discussões sobre quem perde e quem ganha com o desmatamento em cada região da Amazônia é fundamental

Há vários motivos para estarmos caminhando nessa direção. Um deles é a miopia ou inação. Empurramos o problema para frente, na esperança que soluções futuras aparecerão. Esquecemos, porém, que outros desafios se avizinham. O aquecimento global terá um impacto próprio no regime de chuvas, diminuindo a disponibilidade de água em muitas regiões do Brasil. Se por um lado as decisões unilaterais do Brasil não possuem um impacto tão grande na trajetória do aquecimento global, a decisão de proteger ou não a Amazônia cabe primordialmente a nós, brasileiros. Nos anos 2000, o Brasil desenvolveu um arcabouço eficiente de políticas públicas para combater o desmatamento, combinando o uso de tecnologia de monitoramento remoto, fiscalizações focalizadas e a proteção de unidades de conservação e terras indígenas. Ou seja, temos em nossas mãos um instrumento poderoso para combater parte das mudanças climáticas.

Um segundo motivo é o negacionismo. Talvez tenhamos falhado na comunicação. Para que fique claro, a existência dos rios aéreos e a influência deles pela floresta é um consenso científico. O que significa que diferentes pesquisadores, de diferentes instituições, utilizando diferentes métodos, chegaram às mesmas conclusões. Fosse algo mais tangível, a diminuição dos rios voadores poderia já ter gerado pressão de regiões de dentro e fora do Brasil para a manutenção dos serviços ambientais da floresta. Existem tratados internacionais regulando o uso múltiplo de rios entre países e agências reguladoras que cuidam do uso de rios entre diferentes entes de um mesmo país. No entanto, nada parecido existe para os rios aéreos.

A valoração dos rios voadores deveria sempre integrar as discussões sobre o desmatamento. Em particular, é de suma importância considerar o valor gerado pelas unidades de conservação e terras indígenas para os diferentes setores da economia. Ignorar o valor desse serviço ambiental, usando da apatia de partes do setor público e da sociedade que se apoiam no negacionismo da ciência, é restringir as possibilidades de desenvolvimento das populações locais e colocar em risco o desenvolvimento de todo o país e partes da América do Sul.

O processo de ocupação da Amazônia é desorganizado e ineficiente. O que está desmatado já é suficiente para garantir o aumento da produção de alimentos 4. Há uma quantidade enorme de terras que são desmatadas e posteriormente abandonadas. Destruímos os serviços ambientais de áreas enormes e não colocamos absolutamente nada no lugar. Quando colocamos, em geral, trata-se de uma atividade de baixa produtividade, um reflexo do quão ruim são as alternativas econômicas da população local. Ainda, as constantes mudanças e incertezas jurídicas sobre direitos de propriedade geram uma corrida pelo desmatamento, e regularizações frágeis se tornam moeda de troca política. Nossas instituições fracas estão falhando com a Amazônia e com todas as pessoas que dependem direta ou indiretamente dela.

Mais transparência nas discussões sobre quem perde e quem ganha com o desmatamento em cada região da Amazônia é fundamental. Temos as ferramentas necessárias para isso 5. No entanto, a implementação dessa transparência não surgirá de forma espontânea. Os setores que são afetados pelo desmatamento precisam pressionar o governo federal e governos locais em prol de uma agenda robusta e transparente de conservação. Da mesma forma, o governo deve entender que a conservação da Amazônia passa necessariamente por fortalecer as populações e governos locais, em especial comunidades indígenas que trabalham de forma eficiente na preservação da floresta.

Rafael Araujo é analista sênior na área de Infraestrutura no CPI (Climate Policy Initiative) Brasil. Seus principais interesses de pesquisa são organização industrial empírica e economia ambiental. Ele tem conduzido pesquisas sobre o impacto da infraestrutura no desmatamento, o impacto do desmatamento nas chuvas e políticas ótimas para conter o desmatamento. Rafael é doutorando em economia e mestre em economia pela EPGE FGV (Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getulio Vargas) e bacharel em economia pela FEA USP (Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo).

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