Duas décadas de cotas: conquistas e desafios

Luiz Augusto Campos e Márcia Lima
Pesquisadores reunidos no ‘Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas 2022’ visam produzir análises rigorosas sobre os resultados das políticas de cotas no Brasil e qualificar o debate sobre o tema

O ano de 2022 será um duplo marco na história das ações afirmativas no Brasil. Nele, comemoraremos duas décadas do primeiro vestibular com cotas raciais e sociais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), primeira do país a adotar tal gênero de política; e também dez anos da aprovação da Lei n. 12.711/2012, que normatizou as cotas em todo o ensino superior federal. Porém, se as ações afirmativas mudaram a composição de nossas universidades, colocaram a temática racial no centro do debate público nacional e fissuraram as desiguais estruturas educacionais brasileiras, muitos de seus impactos e desafios ainda são nebulosos.

O Brasil conta com excelentes bases de dados educacionais e uma rica bibliografia sobre as ações afirmativas no ensino superior. No entanto, esse conhecimento acumulado ainda é insuficiente para responder perguntas básicas. Não sabemos, por exemplo, qual o total de estudantes cotistas matriculados hoje no país. As melhores estimativas existentes se baseiam no Sisu (Sistema Integrado de Seleção Unificada), que contempla a maior parte, mas não todas as vagas ofertadas pelo sistema. Embora o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) aplique um rico questionário socioeconômico aos milhões de candidatos inscritos a cada ano, seus dados não são integrados a nenhuma outra base. Isso deixa as próprias universidades sem informações sobre o perfil dos candidatos que as procuram. O Censo da Educação Superior, por seu turno, apresenta apenas um retrato do nosso corpo discente num corte temporal, não permitindo acompanhar suas trajetórias dentro do ensino superior, além de uma subnotificação dos dados de raça/cor, um problema presente em muitos registros administrativos

Embora a Lei de Cotas tenha estabelecido em seu texto a necessidade de organizar uma série de pesquisas de avaliação até 2022, praticamente não houve nenhum esforço nesse sentido nos últimos governos. Ao contrário, foram descontinuados inúmeros fóruns e iniciativas criadas para tal. Vale destacar que, para o bem da política de cotas em vigor, a lei não condiciona sua continuidade aos resultados dessa avaliação. Isso porém não anula sua importância.

Diferentes grupos de pesquisa especializados nas desigualdades educacionais vêm se articulando no sentido de sistematizar o conhecimento acumulado que temos sobre as duas décadas de ação afirmativa no ensino superior brasileiro

É baseado nisso que diferentes grupos de pesquisa especializados nas desigualdades educacionais vêm se articulando no sentido de sistematizar o conhecimento acumulado que temos sobre as duas décadas de ação afirmativa no ensino superior brasileiro. Com apoio de diferentes fundações da sociedade civil, o CAA22 (Consórcio de Acompanhamento de Ações Afirmativas 2022) é uma articulação de sete grupos de pesquisa coordenados pelo Núcleo Afro do Cebrap e pelo Gemaa do Iesp-Uerj com vistas a produzir análises sobre os resultados das políticas de cotas em vigor no Brasil. A partir de hoje, os membros do Consórcio publicarão em um índex especial sobre o tema, no Nexo Políticas Públicas, alguns resultados de suas pesquisas. O Consórcio vem se somar a iniciativas similares, como o projeto de pesquisa coordenado por Rosana Heringer e Denise Carreira, que também contribuem para este índex.

De um lado, o Consórcio pretende sistematizar o conhecimento acadêmico publicado em veículos de relevo sobre os sucessos e eventuais problemas enfrentados pelas cotas. Para tal, ele está organizando um amplo levantamento bibliográfico sistemático dos artigos, teses, dissertações e livros sobre o tema mais referenciados no Brasil e no mundo. Do outro, o Consórcio pretende articular os estudos de caso, quantitativos e qualitativos, sobre os alunos cotistas de sete universidades brasileiras.

A ausência de dados integrados sobre a trajetória completa dos estudantes do ensino superior, da origem social à conclusão da graduação, fez com que a bibliografia especializada adotasse três abordagens predominantes. De um lado, os muitos estudos se concentraram nos dados de universidades específicas. Nesses casos, é possível integrar tanto informações prévias à entrada nos cursos, como dados relativos à trajetória dos estudantes dentro das instituições de ensino. Do outro lado, temos as pesquisas baseadas em fontes de dados mais amplas como aquelas do Censo da Educação Superior, do Sisu (Sistema de Seleção Unificada) ou do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Nesses casos, os limites de extrapolação dos estudos incluídos no primeiro grupo são contornados pela existência de informações com validade nacional e atualização periódica. Todavia, a maior parte dessas bases de dados permite abordar apenas uma fase específica da trajetória de cotistas e não cotistas. Diante dessas limitações, um terceiro grupo de pesquisas mais recentes têm buscado a integração dessas diferentes bases de dados nacionais a partir dos serviços de pareamento monitorado a partir de identificadores pessoais como o cpf. Oferecidos por órgãos oficiais como o Inep e Ipea, esses trabalhos demandam a presença física do pesquisador em salas vigiadas dessas instituições, onde eles podem encomendar dados integrados de modo específico sem que seja necessária a exportação das informações sensíveis das fontes mobilizadas.

Contudo, todos esses desenhos metodológicos apresentam limitações. O foco em instituições de ensino específicas permite acompanhar a trajetória completa dos estudantes, mas têm uma capacidade reduzida de extrapolação. O uso de bases de dados mais amplas, por outro lado, costuma superar essa dificuldade, mas ao custo de abordar momentos específicos da trajetória acadêmica dos analisados. A estratégia integradora supera parte dessas duas limitações, mas costuma ficar restrita a estatísticas descritivas mais gerais e concentradas nas universidades federais.

Para contornar essas limitações, pretendemos complementar essas três estratégias predominantes na literatura com duas frentes adicionais de pesquisa. A partir de estudos de caso de sete universidades distintas, incluídas no Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas, buscaremos produzir uma base de dados integradora das informações administrativas das universidades envolvidas. Compõem o nosso recorte desde universidades pioneiras nessas políticas, como a Uerj e a UnB, até instituições que aderiram a elas mais recentemente, como a UFRJ e a Unicamp. Somamos também instituições da região Sul e Nordeste com longa tradição de estudos nessa área como a UFSC e a UFBA. A ideia é produzir uma imagem integrada da realidade de universidades tão distintas em suas políticas de inclusão.

Esses estudos de caso elucidarão questões cruciais acerca da política de cotas sociais e raciais nas universidades brasileiras em um momento particularmente sensível e perigoso para as políticas de cotas. Nossa intenção é contribuir para um debate mais qualificado sobre o tema, baseado em evidências empíricas rigorosas. Tudo isso ajudará a responder como e em que medida a política está funcionando, se seus beneficiários estão de fato acessando os espaços a eles reservados, se estão conseguindo concluir suas graduações e quais são seus principais problemas e desafios contribuindo dessa forma para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Luiz Augusto Campos é professor de sociologia e ciência política no Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e doutor pelo mesmo instituto (2013). É editor-chefe da revista Dados e participa da coordenação de dois grupos de pesquisa: o Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) e o OCS (Observatório das Ciências Sociais). É autor e coautor de vários artigos e livros, dentre os quais “Ação afirmativa: conceito, debates e história”, “Raça e eleições no Brasil” e “Em busca do público: a controvérsia das cotas na imprensa”.

Márcia Lima é professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo) e coordenadora do Afro-Cebrap. É doutora em sociologia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) (2001). Realizou pós-doutorado na University of Columbia (2011-2012) e foi visiting fellow no Hutchins Center for African and African American Studies da Universidade de Harvard (2016-2017). Atualmente é membro do Comitê Executivo da Brazilian Studies Association (2017-2019). Seus temas de investigação são desigualdades raciais e relações raciais, com ênfase nos temas de gênero e raça, educação, mercado de trabalho e políticas de ações afirmativas.

Este texto faz parte da série de publicações no Nexo Políticas Públicas do “Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas 2022”, coordenado pelo Núcleo Afro do Cebrap e pelo Gemaa do Iesp-Uerj.

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