Desigualdades alimentares é um conceito que destaca as diferenças existentes entre grupos distintos de pessoas em relação à produção, distribuição e consumo de alimentos. Ou seja, algumas pessoas têm maiores condições de produzir do que outras; têm mais acesso a alimentos do que outras; e comem alimentos saudáveis em frequência mais adequada do que outras. Escolhemos este conceito para poder abarcar a dimensão relacional, multidimensional e intersecional das relações sociais em torno da alimentação. Um fenômeno global, a pandemia da covid-19 não atinge as pessoas igualmente. Interessados em entender como a pandemia afetava o acesso e o consumo de alimentos na população brasileira, realizamos uma pesquisa de opinião pública nacional por coleta telefônica entre novembro e dezembro de 2020. Um total de 2004 pessoas foram entrevistadas.
Descobrimos que a maioria dos domicílios brasileiros (59,4%) está em situação de IA (insegurança alimentar), que é quando há redução, preocupação ou incerteza quanto ao acesso regular e permanente aos alimentos, em quantidade e qualidade adequadas. Os dados foram publicados pelo grupo de pesquisa Alimento para Justiça, em colaboração com pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e da UnB (Universidade de Brasília). Trata-se de um retrato das desigualdades brasileiras expressas na alimentação: os domicílios onde um dos responsáveis se identifica como de raça ou cor branca, sexo masculino, com renda per capita mensal acima de mil reais, situados nas áreas urbanas, e nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste se encontram muito menos propensos à situação de IA do que aqueles chefiados por uma única pessoa que se identifica como de raça ou cor parda ou preta, sexo feminino, com renda per capita inferior a mil reais e situados nas áreas rurais e nas regiões Norte e Nordeste. Para descobrir estes dados, utilizamos a Ebia (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar).
Além de um auxílio emergencial em valores suficientes para garantir a segurança alimentar e o isolamento social, de forma a combater as pandemias da covid-19 e da insegurança alimentar, é necessário que o Estado retome a institucionalidade robusta das políticas de segurança alimentar e nutricional que já demonstraram que é possível acabar com a fome no Brasil
Mas fomos além e perguntamos à população brasileira seu comportamento de consumo antes e depois da pandemia. Descobrimos que os domicílios em situação de IA já tinham um padrão de consumo irregular (menos de 5 vezes na semana) de alimentos saudáveis mesmo antes da pandemia, tais como carnes (72,6%), hortaliças e legumes (67,2%) e frutas (66,5%). Essa situação se agravou após a pandemia, quando deixou-se de comer alimentos importantes, como o grupo de carnes, que apresentou uma redução de 44% do consumo. Este percentual é muito mais elevado entre os domicílios em situação de IA, que tiveram uma redução de mais de 85,0% no consumo de alimentos saudáveis. Para a medição do consumo alimentar, utilizamos os marcadores de alimentos saudáveis e não saudáveis do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para doenças crônicas não transmissíveis por inquérito telefônico, o Vigitel.
A pesquisa inovou ao cruzar dados sobre a situação de segurança alimentar e o consumo de alimentos, construindo análises que aprofundam o entendimento sobre o fenômeno das desigualdades alimentares. A combinação das metodologias apresentou resultados contundentes que relacionam duas grandes mazelas que atingem o Brasil: desigualdades e violação do direito humano à alimentação adequada.
Embora os nossos dados sejam um retrato do período da pandemia da covid-19, pesquisas anteriores já apontavam para o aumento da IA no país desde 2017-2018, quando a POF (Pesquisa de Orçamento Familiar) daquele ano revelou que a IA atingiu 36,7% dos domicílios brasileiros, um aumento de 14,1 pontos percentuais em relação à mensuração anterior de 22,6%, feita pela Pnad - 2013. A renda tem impacto direto no acesso aos alimentos. Com o aumento do desemprego no país, a desvalorização do salário mínimo nos últimos anos e a inflação, não havia como esperar resultados melhores.
Soma-se ao quadro de crise econômica uma agenda política que, embora na década anterior havia priorizado o combate à fome, se converteu em uma agenda intensa da austeridade a partir de 2016, processo que vem se acentuando desde então. De uma política continuada de valorização real do salário-mínimo e expansão do sistema nacional de seguridade social, passou-se a uma política de flexibilização dos direitos trabalhistas, redução dos gastos públicos com políticas sociais e perda do poder de compra do salário-mínimo.
Do lado da produção de alimentos e de sua distribuição, observamos desde 2016 o desmantelamento das políticas públicas de promoção da agricultura familiar, com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (2016) e o sucateamento dos PAA (Programa Nacional de Aquisição de Alimentos) e o Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Em 2019, o governo nacional fechou os canais de diálogo com a sociedade civil organizada, e optou por ignorar o acúmulo de décadas de aprendizado na promoção do direito à alimentação: extinguiu o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e deixou de convocar a sociedade civil por meio da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. As políticas de incentivo ao um modelo agroexportador de commodities têm se intensificado, sem mediações sobre seu impacto na oferta nacional de alimentos: o plantio de soja tem substituído o plantio de arroz e feijão; a exportação tem diminuído os estoques nacionais de arroz e óleo de soja; contribuindo para a inflação do preço de alimentos.
Como nos ensinou Josué de Castro, a fome é uma opção política, e seu combate passa não só pela quantidade de alimentos produzidos, mas por políticas de superação das desigualdades socioeconômicas, que atuem sobre a distribuição de renda e de terras e favoreçam o acesso a alimentos saudáveis por todos. Por isso, o enfrentamento à fome e a promoção da segurança alimentar e nutricional são, antes de tudo, opções políticas.
Além de um auxílio emergencial em valores suficientes para garantir a segurança alimentar e o isolamento social, de forma a combater as pandemias da covid-19 e da insegurança alimentar, é necessário que o Estado retome a institucionalidade robusta das políticas de segurança alimentar e nutricional que já demonstraram que é possível acabar com a fome no Brasil, bem como uma agenda de promoção do trabalho e da renda. Em caráter de urgência, o apoio da sociedade civil e setor empresarial é fundamental para garantir comida de verdade na mesa da população brasileira. Em nossas pesquisas, temos mapeado estas iniciativas da sociedade civil e há diversas ações que mostram que a sociedade vem se mobilizando para combater a fome por meio do recolhimento e doação de alimentos para pessoas vulneráveis, seja in natura ou por meio de marmitas. Porém, estes esforços não substituem o papel do Estado na garantia do direito constitucional à alimentação adequada.
A pandemia da covid-19 tem acentuado as desigualdades múltiplas da sociedade brasileira, inclusive as desigualdades alimentares, e tem mostrado como as escolhas políticas da sociedade brasileira nos últimos anos têm ajudado a aprofundá-las. Para enfrentá-las, é urgente mudar de rumo.