De bom pagador a superendividado

Viviane Fernandes
A pandemia do novo coronavírus trouxe vários dos principais motivos responsáveis pelo endividamento individual e familiar. Sem legislação adequada, poucas soluções estão disponíveis para aqueles que não podem cumprir suas obrigações financeiras

Apesar dos esforços de especialistas em direito do consumidor para que os problemas produzidos pelo superendividamento ganhem projeção e o fenômeno seja caracterizado no ordenamento jurídico, o tema ainda não recebeu a devida atenção no debate público. No entanto, diante do contingente de pessoas que apresentam dívidas que ultrapassam sua capacidade de pagamento, parece incontornável a necessidade de compreender não apenas os números, mas, sobretudo, as dinâmicas do endividamento. O aumento do número de famílias com dívidas e a recente aprovação da Lei do Superendividamento revelam a urgência desta discussão.

Conforme estimativas do SPC (Serviço de Proteção ao Crédito) e Serasa, são mais de 60 milhões de pessoas inadimplentes no país, quase 40% da população adulta. Se muitas famílias já enfrentavam dificuldades para equilibrar receitas e despesas, agora a situação se agrava: redução de renda, desemprego, doença e morte - a pandemia do novo coronavírus trouxe, de uma só vez, vários dos principais motivos responsáveis pelo endividamento individual e familiar.

Diante do modo desigual em que as pessoas foram atingidas pela crise, muitas famílias passaram a ter dificuldades para arcar com as despesas correntes, vendo acumular dívidas nas contas de água, luz, telefone, somadas às cobranças de aluguel, mensalidade escolar, plano de saúde, cartões de crédito e financiamentos. O que cortar, o que reduzir, o que priorizar trouxe a administração dos orçamentos domésticos para o centro das preocupações familiares.

Quais serão os limites de precarização da vida para garantir o pagamento das obrigações contratadas?

Dores de cabeça, dificuldade para dormir e ansiedade são alguns dos sintomas relatados pelas pessoas que enfrentam dificuldades financeiras. Ao longo de um ano de pesquisa junto ao Nudecon (Núcleo de Defesa do Consumidor) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, observou-se que a possibilidade de ser rotulado “caloteiro” “mau pagador” e “irresponsável” está entre as principais preocupações daqueles que não conseguem pagar suas dívidas. Ter o “nome sujo” ou “estar negativado” são descritas pelas pessoas assistidas pelo Nudecon como experiências dolorosas e constrangedoras (Fernandes 2019).

O que fazer quando não é possível continuar pagando os contratos? No início da pandemia, especialistas em finanças pessoais e as próprias instituições financeiras usaram diferentes meios de comunicação para orientar as pessoas a procurar os credores e renegociar as dívidas. No entanto, tais recomendações trouxeram à tona as dificuldades encontradas para rever os financiamentos e contratos: acessar as instituições, compreender as regras contratuais e obter condições de renegociação condizentes com a capacidade de pagamento.

A solução habitual para a regularização das dívidas é a oferta de mais crédito. Renovam-se os contratos oferecendo crédito para o pagamento dos débitos anteriores, aplicando taxas de juros correspondentes ao prazo de parcelamento. Ou seja: a solução passa por um aprofundamento do endividamento, que, em pouco tempo, pode consumir grande parte dos recursos individuais ou familiares.

A percepção da dívida como “bola de neve”, descrita por muitos endividados, revela não só o efeito dos juros, mas também a tentativa de buscar cada vez mais crédito para se manter adimplente. O resultado desse ciclo é o chamado superendividamento. O fenômeno exprime a situação na qual o devedor tem débitos que ultrapassam sua capacidade de pagamento, não só afetando as práticas de consumo, mas culminando em uma situação de grande vulnerabilidade.

Em resposta à crise, o governo aprovou a ampliação da margem consignável, passando de 35% para 40% o percentual máximo da renda mensal a ser comprometida com a contratação de crédito consignado – uma ação que, novamente, reforça a tomada de crédito. O aumento da margem consignável, junto à redução de renda familiar, coloca mais pressão sobre aqueles com capacidade de endividamento. Como identificado por estudos conduzidos pelo Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia (UFRJ) em parceria com a Dignity+Debt Network (Princeton University), o endividamento, apesar de registrado sob um único CPF, raramente é um problema individual. Nas crises, laços de solidariedade resultam em pedidos para que parentes ou amigos acessem fontes de dinheiro e ajudem a compor as perdas de orçamento daqueles que são próximos. Nesse sentido, idosos e aposentados são duplamente suscetíveis às pressões para a contratação de crédito: seja pelo assédio dos fornecedores dos produtos financeiros, seja pelas pressões familiares. Conforme divulgado pelo IPEA (Camarano 2020), em 20,6% dos lares brasileiros a renda dos idosos responde por mais de 50% dos rendimentos da família.

A despeito dos estigmas que recaem sobre os superendividados, muitos possuem histórico de bons pagadores e se encontram adimplentes. São pessoas que, distribuídas entre diferentes classes sociais e níveis de renda, esforçam-se para não deixar de pagar as dívidas, recorrendo a todas as linhas de crédito. Tendo seus recursos comprometidos com as obrigações junto aos credores, sobra pouco ou quase nada. A contratação de modalidades de crédito cujo reembolso é automaticamente descontado da folha de pagamento ou da conta corrente deixa o devedor com pouca margem de renegociação, pois há pouco interesse em se negociar com quem está adimplente. Sem legislação adequada, poucas soluções estão disponíveis para aqueles que não podem cumprir suas obrigações financeiras.

No entanto, é possível que tal cenário mude. Depois de quase uma década de tramitação no Congresso, foi sancionada, em 1º de julho, a Lei do Superendividamento (n. 14.181), que atualiza o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso. Instaura-se, agora, instrumentos para regular a oferta de crédito, prevenir e tratar, judicial ou extrajudicialmente, o superendividamento. O texto exige transparência na oferta de produtos financeiros, dispõe sobre a possibilidade de arrependimento na contratação do crédito e protege idosos e analfabetos do assédio dos fornecedores. Ademais, propõe formas de repactuação das dívidas estabelecendo um plano de pagamento que não comprometa o “mínimo existencial” do consumidor.

A aprovação da lei reacende a relevância de ampliar o debate público sobre o endividamento das famílias e exigir a implementação das regras previstas. Caberá aos operadores do direito e aos interessados no tema acompanhar as formas de conciliação e mediação entre consumidores e instituições financeiras. Será importante verificar como serão feitos os cálculos que definirão os planos de pagamento. A defesa do mínimo existencial impõe um novo debate: quais serão os limites de precarização da vida para garantir o pagamento das obrigações contratadas?

BIBLIOGRAFIA

Camarano AA. Os dependentes da renda dos idosos e o coronavírus: órfãos ou novos pobres? Rio de Janeiro: Ipea; 2020. [Nota Técnica nº 81]

Fernandes, Viviane. Cuidando da saúde financeira: uma etnografia sobre endividamento. Tese de doutorado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019.

Viviane Fernandes é doutora em antropologia e pesquisadora do NuCEC (Núcleo de Pesquisas em Cultura). Atualmente é pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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