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Avanços e desafios na trajetória da regulamentação das políticas de valorização da carreira docente no Brasil

Lauana Simplício Pereira, Catarina Segatto e Ursula Peres
Ainda que o Brasil não tenha realizado uma reforma educacional nesse sentido, nas últimas décadas, diversos avanços foram centrais para a melhoria da formação e da carreira dos profissionais da educação básica. Conheça os principais marcos desta história

O reconhecimento de que os professores são fundamentais para a melhoria da qualidade da educação colocou no centro do debate questões relacionadas à formação inicial e continuada dos professores, carreira docente, salários e condições de trabalho. Orientados por esse viés, diversos países realizaram reformas educacionais que promoveram mudanças significativas na formação e carreira docente.

Ainda que o Brasil não tenha realizado uma reforma educacional nesse sentido, nas últimas décadas, diversos avanços foram centrais para a melhoria da formação e da carreira dos profissionais da educação básica. A Constituição Federal de 1988 iniciou esse processo considerando os planos de carreiras do magistério público como estratégia importante para alcançar o objetivo de valorização profissional. O fortalecimento da coordenação nacional ao longo dos anos teve efeitos na expansão do número de professores com formação inicial em nível superior e na garantia de padrões mínimos de remuneração e jornada de trabalho. Por fim, determinadas normativas nacionais avançaram estabelecendo diretrizes relacionadas à formação continuada dos professores.

Entretanto, é importante mencionar que a desvalorização da profissão ainda caracteriza o país e há uma enorme heterogeneidade nos salários e condições de trabalho dos professores entre estados e municípios por todo o país. Isso resulta em baixos salários em comparação a outros profissionais com formação em nível superior, o que é particularmente presente em contextos marcados por grande vulnerabilidade social e fragilidades financeiras, e na pouca atratividade da carreira docente.

1971

Lei de Diretrizes e Bases de 1971 (Lei nº 5.692 de 1971)

Por um longo período, a profissão de professor não possuía sua própria regulamentação, sendo, na maioria dos sistemas de ensino, abrangida pelas diretrizes gerais dos estatutos dos servidores públicos. No entanto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1971, ao estabelecer as bases para o ensino de primeiro e segundo graus, introduziu uma mudança significativa. Seu artigo 36 determina que cada sistema de ensino é responsável por elaborar estatutos específicos para organizar a carreira dos professores. Também estabeleceu orientações sobre exigências de formação mínima em ensino superior e admissão por concurso público.

1988

Constituição Federal de 1988

Seu artigo 206 estabelece como princípio a valorização dos profissionais do ensino, garantido, na forma da lei, plano de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, assegurado regime jurídico único para todas as instituições mantidas pela União. Estes componentes, assim, tornam-se essenciais para a promoção e reconhecimento dos profissionais da educação no sistema público brasileiro.

1996

Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (Lei nº 9.394 de 1996)

Reforçou e complementou as determinações constitucionais, ao estipular que os estatutos e os planos de carreira devem assegurar diversos aspectos fundamentais para os profissionais da educação, tais como: i) admissão por meio de concurso público; ii) oportunidades para aprimoramento profissional, incluindo licença remunerada e garantia de piso salarial, sem contudo, definir seu valor; iii) progressão na carreira com base na titulação e avaliação de desempenho, estabelecimento de uma carga horária que inclua tempo dedicado a estudos e planejamento e avaliação; iv) fornecimento de condições de trabalho adequadas, além de determinar a necessidade dos docentes contarem com formação de nível superior para atuar na Educação Básica.

Emenda Constitucional nº 14 de 1996

Criou o Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) e determinou uma proporção não inferior a 60% dos recursos do Fundo ao pagamento dos professores do ensino fundamental em efetivo exercício no magistério, como forma de valorizar a profissão. Alguns estudos mostram que o Fundef levou a um aumento do número de professores contratados e dos salários dos professores, especialmente, nos municípios que “ganharam” com as novas regras de distribuição de recursos conforme o número de matrículas de cada rede (Cruz, 2018; Menezes-Filho & Pazello, 2007).

Lei nº 9.424 de 1996

Regulamentou o Fundef e determinou, em seu artigo 9º, que os estados e municípios deveriam aprovar um Plano de Carreira e Remuneração do Magistério que assegure remuneração condigna dos professores do ensino fundamental público, em efetivo exercício no magistério, estimule o trabalho docente e melhore a qualidade do ensino. Essa determinação fez com que boa parte dos estados e municípios elaborasse ou reformulasse seus planos de carreira (Gatti & Barreto, 2009).

1997

Resolução CNE/CEB nº 3 de 1997

Determinou ao Conselho Nacional de Educação (CNE) a responsabilidade de estabelecer diretrizes para elaboração ou revisão dos planos de carreiras e remuneração do magistério. Assim, em 1997, o CNE, elaborou as Diretrizes para os Novos Planos de Carreira e Remuneração do Magistério dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. No entanto, segundo Barbosa (2023), essa resolução carecia de diretrizes claras em relação à definição das jornadas de trabalho, permitindo jornadas com menos de 40 horas por semana e estabelecendo que entre 20% e 25% da jornada fosse dedicada às horas-atividades. Também não menciona o piso salarial nacional.

2001

Plano Nacional de Educação (PNE) 2001

Em algumas metas, como as metas 1, 4, 15 e 22, há a determinação de valorização dos profissionais da educação, incluindo fortalecimento da formação inicial e continuada, garantia das condições adequadas de trabalho, com previsão de tempo para estudo e preparação das aulas, remuneração adequada, com piso salarial e carreira de magistério.

2006

Emenda Constitucional nº 53 de 2006

Criou o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), em ampliação ao Fundef, e reforçou, em seu artigo 206, a criação de planos de carreira e o ingresso na carreira por concurso público de provas e títulos. Também determinou o piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública.

2008

Lei do Piso Salarial Nacional (Lei nº 11.738 de 2008)

Instituiu o piso salarial nacional, estabeleceu o vencimento inicial em R$ 950 (2,3 salários mínimos à época), e criou mecanismo de correção anual, indexado ao aumento do valor mínimo anual por aluno no âmbito do Fundeb. Criou, ainda, percentual mínimo de um terço da carga horária para dedicação às atividades extraclasse, determinando a criação ou adequação dos planos de carreiras a essas regras.

2009

Resolução CNE/CEB nº 2 de 2009

Determinou novas diretrizes indicando critérios desejáveis para a definição da remuneração das carreiras, como os vencimentos serem superiores ao piso recém-criado, revisados anualmente, diferenciados por titulação, sem diferenciação por etapa de ensino em que o profissional do magistério atua. Também sugeriu critérios para progressão na carreira, que, apesar de sua centralidade para o reconhecimento e incentivo ao desenvolvimento profissional, costumam ser preteridos nas discussões de carreiras, as quais, em geral, orbitam apenas em torno da definição dos níveis e tipos de remuneração.

Parfor

Com o objetivo de solucionar histórico déficit de professores qualificados em atuação na educação básica, o MEC criou o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor), que oferta vagas em cursos de licenciatura para professores das redes públicas que não tenham formação em nível superior, atuem em áreas distintas da sua formação inicial ou que não tenham habilitação em licenciatura. Em 2023, o Plano lançou seu primeiro edital voltado à promoção de equidade, para formar professores das redes públicas e comunitárias que ofertam educação escolar indígena, quilombola e do campo, educação especial inclusiva e educação bilíngue de surdos.

2014

PNE 2014

Determina como a meta 16 a formação em nível de pós-graduação de 50% dos professores da educação básica até 2024 e a garantia de formação continuada na área de atuação do profissional, considerando as necessidades, demandas e contextos, a todos os profissionais da educação básica. A meta 17 determina a valorização dos profissionais do magistério com equiparação de seu rendimento médio aos demais profissionais com escolaridade equivalente até 2024. Por fim, a meta 18 determina, no prazo de dois anos, a existência de planos de carreira para os profissionais da educação e que o piso salarial nacional seja referência em todos os planos de carreira dos profissionais da educação.

2015

Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) nº 2 de 2015

Apresentou diversas diretrizes relacionadas à formação dos professores, incluindo duração para formação inicial, complementação pedagógica e segunda licenciatura.

2019

Resolução CNE/CEB nº 22 de 2019

Flexibilizou DCN nº 2 de 2015 ao diminuir a carga horária da complementação pedagógica e da segunda licenciatura, definiu referenciais docentes para formação inicial de professores, definiu conteúdos da formação inicial relacionados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e apresentou diretrizes referentes à formação prática.

2020

Resolução CNE/CEB nº 1 de 2020

Determinou referenciais docentes para formação continuada de professores.

Emenda Constitucional nº 108 de 2020

Instituiu o Fundeb Permanente prevendo a ampliação de aplicação mínima de 60% para 70% dos recursos do fundo no pagamento dos profissionais da educação básica em efetivo exercício, reforçando o mecanismo de valorização salarial desses profissionais.

Essas regulamentações nacionais, em alguns casos, combinadas a mecanismos de redistribuição de recursos e de indução financeira foram centrais para o avanço da formação inicial em nível superior dos professores, de estruturação de programas de formação continuada e da institucionalização de carreiras docentes, incluindo remuneração adequada e jornada de trabalho.

No entanto, a aprovação da legislação que criou o piso não implicou em implementação pacífica nos diferentes entes subnacionais. Diversos governadores ajuizaram ações no Supremo Tribunal Federal (STF), pleiteando a inconstitucionalidade da lei, alegando ingerência da União sobre as finanças dos estados e municípios (XIMENES, 2012). Desde então, há extensa judicialização sobre o tema, embora o STF já tenha decidido pela constitucionalidade da lei federal. É importante lembrar que em nosso federalismo, as unidades subnacionais são autônomas e estabelecem regras locais para regulamentação das definições da União. Nesse sentido, alguns estudos demonstram que os entes se valem de uma série de estratégias diferenciadas para cumprirem o piso, o que provoca heterogeneidades entre eles e enfraquece o objetivo de padronização da remuneração (CAVALCANTE, 2019).

Seria fundamental, portanto, avanços na redução dessas desigualdades entre regiões e na estruturação das carreiras dos profissionais da educação com definição de critérios de progressão com maior potencial de induzir o desenvolvimento profissional combinada a uma remuneração mais atrativa, inclusive voltada à promoção de equidade remuneratória entre homens e mulheres, brancos e negros, formas de entrada na carreira docente (formas de seleção distintas das tradicionalmente utilizadas, como as provas escritas) e mecanismos de desligamento de profissionais. Somadas a essas questões, a definição de fontes de recurso para o pagamento do piso e critérios equânimes de distribuição destas fontes são pleiteados pelos entes subnacionais, em especial aqueles com menor volume de receitas próprias.

As políticas que valorizam e profissionalizam o magistério são fundamentais para o aprimoramento da educação brasileira. Entretanto, elas precisam ser mais estratégicas, coordenadas, compondo um modelo mais sistêmico que integre a formação inicial, o ingresso na carreira docente, a formação continuada, as diferentes dimensões da carreira docente e o desenvolvimento profissional. Refletir sobre remuneração docente é um grande desafio nacional e federativo, avançar nesse desafio garantindo equidade de gênero e raça é um fundamento para a promoção de um país mais justo.

BIBLIOGRAFIA

Barbosa, A. (2023). Mudanças nos planos de carreira do magistério paulista e a desvalorização docente. Educar em Revista, 39.

Cavalcante, C. et al (2019). Piso Salarial Nacional do Magistério Público: um retrato da política. Texto para Discussão. Tesouro Nacional.

Cruz, T. (2018). Teacher hiring decisions: How do governments react to an exogenous redistribution of education funds?. Economics of Education Review, 67, 58-81.

Gatti, B. A., & Barreto, E. S. D. S. P. (2009). do Brasil: impasses e desafios.

Menezes-Filho, N., & Pazello, E. (2007). Do teachers’ wages matter for proficiency? Evidence from a funding reform in Brazil. Economics of Education Review, 26(6), 660-672.

Ximenes, S. B. (2012). O Debate sobre a Lei do Piso Salarial Nacional para o Magistério no STF: avanços e desafios para o direito à educação no Brasil. In: XIMENES, Salomão Barros (Coord.). Em Questão n. 7: lei do piso – debates sobre a valorização do magistério e o direito à educação no STF. São Paulo: Ação Educativa; Campanha Nacional pelo Direito à Educação, p. 7-29

Lauana Simplício Pereira é bacharela em gestão de políticas públicas, mestranda no Departamento de Ciência Política pela USP (Universidade de São Paulo) e assessora parlamentar na ALESP (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo).

Catarina Segatto é doutora em administração pública e governo (FGV EAESP), professora do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora do CEM-Cepid/FAPESP (Centro de Estudos da Metrópole).

Ursula Peres é doutora em economia (EESP/FGV/SP), professora do curso gestão de políticas públicas da EACH/USP (Escola de Artes Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo) e pesquisadora do CEM-Cepid/FAPESP (Centro de Estudos da Metrópole).

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