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Alimentação escolar no Brasil

Natália Gebrim Doria e Paulo Eduardo Moruzzi Marques

Dos anos 1930 até a pandemia de covid-19, as mudanças da legislação e das políticas públicas impactaram os hábitos alimentares de estudantes

A alimentação escolar é considerada a mais antiga política pública de alimentação e nutrição ainda vigente no Brasil. Foi institucionalizada enquanto programa público em 1955 e é uma ferramenta fundamental para o combate à fome, a garantia do direito humano à alimentação e nutrição adequadas e o alcance da segurança alimentar e nutricional.

Os objetivos e diretrizes do Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar) apontam na direção da promoção da saúde dos escolares a partir da contribuição para o seu crescimento e desenvolvimento biopsicossocial, aprendizagem e formação de hábitos alimentares saudáveis, além da promoção do desenvolvimento rural, pela determinação da aquisição de gêneros alimentícios diversificados, produzidos localmente e preferencialmente da agricultura familiar, priorizando as comunidades tradicionais indígenas e quilombolas. Esses elementos são fundamentais para evidenciar a importante contribuição da política pública em termos de articulação entre a educação, a saúde e a agricultura.

Observar o percurso histórico da alimentação escolar no Brasil é fundamental para compreender as disputas existentes nesse campo e a importância do controle social para que haja conquistas e avanços em prol de uma alimentação adequada e saudável para o público atendido pelo programa. Neste sentido, o Pnae representa uma ferramenta de grande interesse social por sua promoção da segurança e da soberania alimentar no Brasil.

Década de 1930

Pioneiras discussões sobre a alimentação de crianças e escolares são propostas por nomes da nutrologia, como Dante Costa, Alexandre Moscoso e Josué de Castro, nos anos de 1930. Este último autor, em seu livro “Alimentação e raça”, de 1936, já pontuava a escola como um local privilegiado para a promoção da educação alimentar dos jovens e destacava sua influência positiva sobre os hábitos alimentares das famílias dos escolares.

Década de 1950

A temática da alimentação escolar ganhou progressivamente força, mas ações públicas institucionalizaram-se apenas a partir dos anos 1950. Em 1952, a CNA (Comissão Nacional de Alimentação) elaborou um plano de trabalho denominado “A conjuntura alimentar e o problema da nutrição no Brasil”, que se tornou base para o primeiro “Plano Nacional de Alimentação e Nutrição”. Assim, foi concebida a estrutura de um programa de merenda escolar nacional, inicialmente restrito a algumas regiões do Nordeste com caráter experimental.

1954

Josué de Castro protagonizou a publicação da Cartilha da Merenda Escolar, lançada pelo MEC (Ministério da Educação e Cultura), que considerou a alimentação escolar como estratégia fundamental de combate à fome e à desnutrição.

1955 - 1956

Ocorre a institucionalização da alimentação escolar com a promulgação do decreto n. 37.106/1955 que criou a CME (Campanha da Merenda Escolar), vinculada ao MEC.

Em 1956, o programa passou a se chamar Campanha Nacional de Merenda Escolar, indicando que todo o território nacional seria coberto por esta ação pública. Esta denominação permaneceu até 1964.

1956 - 1964

Estes anos marcaram um longo período no qual o Brasil recebeu doações ou comprou gêneros alimentícios de organizações internacionais como: o Fisi/ONU (Fundo Internacional de Socorro à Infância, da Organização das Nações Unidas); a CCC (Commodity Credit Corporation), autarquia do Ministério da Agricultura norte americano; a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), através do programa “Alimentos para a Paz” e o PMA/ONU (Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas).

O fornecimento de gêneros alimentícios por essas organizações criou um vínculo de dependência do Brasil com as agências internacionais. Assim, a existência do programa esteve em permanente risco, como quando o Fisi e a CCC diminuíram progressivamente o fornecimento de leite em pó alegando escassez da mercadoria, por volta de 1960.

Em março de 1961, quando o Brasil passou a receber gêneros do programa “Alimentos para a paz”, Josué de Castro passou a publicizar relevante crítica a essa relação com os organismos internacionais, apresentando a iniciativa como uma barganha política dos Estados Unidos e alegando que o governo americano escoava seus excedentes agrícolas às custas da fome dos povos do mundo. Com efeito, qualificou o programa como um concorrente à indústria nacional que criaria dependência e formaria hábitos alimentares que não poderiam ser satisfeitos quando os excedentes doados acabassem

1965

Com o decreto n. 56.886/1965, o programa passou a ser designado CNAE (Campanha Nacional de Alimentação Escolar). A partir de então, passou a ofertar uma refeição completa, com legumes, verduras e alimentos ricos em proteínas, fornecidos pelos estados e comunidades locais. Ademais, houve ampliação do atendimento para estudantes de supletivos, do ensino secundário e para parte dos pré-escolares.

1966

As constantes ameaças de corte do auxílio americano para o suprimento de gêneros à alimentação escolar, que já vinham ocorrendo e que se intensificaram a partir de 1966, impulsionaram o governo brasileiro, apesar de sua grande negligência com o tema, a buscar alternativas para o abastecimento alimentar ao programa. A partir deste ano, parte dos alimentos destinados às escolas passou a ser comprada de indústrias instaladas no território nacional, processo que se acentuou na década de 1970.

1972

Criou-se o Inan (Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição) e a questão alimentar, antes vinculada ao Conselho Federal de Comércio Exterior, passou a estar vinculada ao Ministério da Saúde. As atribuições da Campanha Nacional de Alimentação Escolar seguiram sob competência do Ministério da Educação e Cultura, no entanto, orientadas pelo Inan, por via do Pronan I (1973) e II (1976) (Programa Nacional de Alimentação e Nutrição).

1975

O apoio da USAID chegou ao fim e o abastecimento alimentar das escolas − que já vinha sendo conquistado pelas indústrias de alimentos, fossem brasileiras ou multinacionais − consolidou-se com o estabelecimento do mercado institucional da alimentação escolar.

A tentativa de mudança de prioridade na alimentação escolar com a orientação do Pronan de inserção de produtos in natura produzidos localmente pelo pequeno produtor rural, tornou-se inviável, uma vez que a ligação com a indústria de alimentos tomou proporções políticas expressivas. Efetivamente, o poderoso e articulado segmento empresarial não estava disposto a abrir mão de um mercado já conquistado, que apresentava notórias vantagens e oportunidades.

1979

Uma relevante mudança ocorreu no programa, que passou a ter caráter universal e a cobrir todo o território nacional. Então, tornou-se Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar), nome adotado até os tempos atuais. Neste momento, por mais que o programa tenha apresentado avanços em seu marco legal relativos às conquistas de direito ao acesso aos alimentos, a alimentação escolar não era ainda um direito garantido constitucionalmente, o que ocorreu com a Constituição de 1988.

1983

Foi criada a FAE (Fundação de Assistência ao Estudante), um órgão subordinado ao MEC com o objetivo de apoiar os programas de amparo ao estudante. Dentre as suas atribuições, estava o apoio alimentar e nutricional. A FAE foi responsável pela centralização da compra e distribuição de gêneros alimentícios no âmbito do Pnae, o programa com maior aporte financeiro da Fundação, representando em torno de 75% dos recursos repassados. Esta atribuição coube à FAE até 1993. Ao longo deste período, a aquisição de gêneros alimentares continuou privilegiando produtos da indústria alimentícia, sem a inclusão de compras diretas de pequenos produtos rurais, como previsto no Pronan II, e a centralização das compras apresentava vantagens e conveniências às empresas industriais do setor.

1988

A partir da Constituição Federal de 1988, a alimentação escolar passa a ser um direito assegurado a todos os alunos do ensino fundamental da rede pública, de acordo com seu inciso VII, artigo 208. A promulgação da Constituição promoveu dois elementos fundamentais que influenciaram a estrutura do Pnae nos anos subsequentes: a descentralização e a participação social na gestão do programa.

1994

A partir da lei n. 8.913/1994, consolidou-se o processo de descentralização do Pnae, iniciado em 1992, o que permitiu a todos os municípios do país desenvolver uma estrutura operacional e administrativa para gerenciar o programa nas localidades.

A mesma lei determinou a criação dos CAE (Conselhos de Alimentação Escolar). A elaboração dos cardápios passou a ser de responsabilidade dos estados e municípios, por meio de nutricionistas, em acordo com o CAE, levando em consideração os hábitos alimentares e a vocação agrícola das localidades. Produtos in natura da região devem ser preferidos, o que deveria também contribuir para uma redução de custos. A criação dos CAE representou um avanço do Programa quanto à participação e ao controle social, aproximando a sociedade civil das esferas públicas de gestão local do Pnae.

1997

A partir de 1997, o Pnae passou a ser gerenciado pelo FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), em substituição à FAE. No ano seguinte, ocorreu a consolidação de seu processo de descentralização, a partir da medida provisória n. 1.784. O repasse dos recursos federais para estados e municípios se tornou automático, calculado com base no número de matrículas, obtido no censo escolar do ano anterior, o que suprimiu a necessidade de celebração de convênio entre estas esferas de governo.

2000

As atribuições e composição dos CAE foram definidas a partir da medida provisória n. 1979-19/2000. A partir de então, os CAE são concebidos como órgãos deliberativos, de fiscalização e assessoramento, que devem atestar a regularidade da aplicação dos recursos repassados pelo FNDE e zelar pela qualidade dos produtos. Sua composição deve incluir representantes dos poderes executivo e legislativo, professores, pais e mães de alunos, além de outros segmentos da sociedade civil.

2001

A tentativa de inserção de produtos in natura, com compra direta junto a produtores rurais, para a alimentação escolar ocorre desde os anos de 1970. No entanto, a legislação do programa não apresentou nenhuma orientação direta desde a promulgação do Pronan II.

Com a publicação da medida provisória n. 2.178-36, de 2001, a aquisição de produtos básicos, descritos na legislação como os “semi-elaborados e in natura”, tornou-se prioritária: no mínimo 70% (setenta por cento) dos recursos do Pnae deveriam ser destinados para esse fim, com prioridade à compra de produtos locais. Enquanto marco legal, essa legislação orientou o programa na direção da oferta de refeições mais adequadas e saudáveis, restringindo o consumo de alimentos industrializados.

2009

Ocorrem importantes alterações na legislação do Pnae que efetivamente orientaram a alimentação escolar à compra de produtos da agricultura familiar 1. A lei n. 11.947/2009 determinou que no mínimo 30% (trinta por cento) dos recursos repassados pelo FNDE para as entidades executoras do programa devem ser utilizados para a aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar.

Essa legislação permitiu a dispensa de processo licitatório. Assim, a compra dos gêneros alimentícios oriundos de estabelecimentos familiares passou a ocorrer por chamada pública. Essa ferramenta permitiu a compra exclusiva de produtos da agricultura familiar e estabeleceu critérios diferentes daqueles de menor preço. Neste mesmo ano, com a Emenda Constitucional n. 59, a alimentação escolar se tornou um direito para todas as etapas da educação básica.

11 de março a 07 de abril de 2020

No dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2, que provoca a doença covid-19. O país entrou em situação de emergência sanitária e medidas de distanciamento social foram implantadas, o que acarretou a suspensão das aulas na rede pública de ensino a partir do dia 23 de março de 2020. Desta maneira, a distribuição das refeições aos estudantes em ambiente escolar deixou de ocorrer.

Em 07 de abril, a lei n. 13.987/2020 autoriza a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos com recursos do Pnae aos pais ou responsáveis dos estudantes das escolas públicas de educação básica, durante o período de suspensão das aulas. Em seguida, a resolução n. 02, de 09 de abril de 2020, dispôs sobre a execução do Pnae para o período.

O respaldo legal para a continuidade da execução do Pnae foi fundamental. No entanto, não ocorreu transferência de recurso federal suplementar e tão pouco foi oferecido apoio logístico aos estados e municípios para execução do programa em situação excepcional, o que representou grandes desafios para sua gestão local, em particular para garantir os seguintes pontos: 1. seu caráter universal, uma vez que a pandemia afetou o atendimento de todas as pessoas matriculadas no ensino público básico; 2. a qualidade e quantidade dos alimentos oferecidos por via de kits; 3. as compras da agricultura familiar, que foram suspensas em grande parte dos municípios brasileiros.

08 de maio de 2020 a 02 de dezembro de 2020

A resolução n. 06/2020 do Pnae alterou os critérios para seleção dos projetos de venda de alimentos. A partir dessa resolução, a seleção destes projetos passa a atribuir prioridade aos grupos de fornecedores do mesmo município em que a compra está sendo realizada, seguido por grupos situados em regiões geográficas imediatas, do município, do estado e do país.

Essa mesma resolução prescreve que no mínimo 75% do recurso transferido pelo FNDE devem ser destinados à aquisição de alimentos in natura e minimamente processados, restringindo a compra de alimentos processados e ultraprocessados a, no máximo, 20% deste montante. Ainda, com relação à oferta de alimentos, a resolução n. 06/2020 e a resolução n. 20/2020 detalham as orientações referentes à composição dos cardápios quanto às necessidades nutricionais de energia e macronutrientes; à exigência da quantidade mínima de porções de frutas, legumes e verduras in natura; à restrição de produtos cárneos, alimentos em conserva, líquidos lácteos com aditivos e adoçados, doces, bolachas, margarina ou creme vegetal e; à proibição da oferta de gorduras trans industrializadas e de alimentos ultraprocessados para menores de três anos, bem como a adição de açúcar, mel e adoçantes nas preparações culinárias e bebidas.

16 de novembro de 2021

A partir da resolução n. 21, o limite individual de venda do agricultor familiar para a alimentação escolar passou de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) por ano. O último reajuste havia ocorrido em 2012, tendo passado de R$ 9.000,00 (nove mil reais) – que vigorou desde 2009 – para R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

BIBLIOGRAFIA

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Doria, N. G. Agricultura familiar e promoção da saúde: um novo olhar para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Dissertação (mestrado). Universidade de São Paulo/ Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”. Centro de Energia Nuclear na Agricultura. Piracicaba, 152 p. 2019.

Peixinho, A.M.L. Um resgate histórico do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, 2011. 133 p.

Rordrigues. P.S. O programa nacional de alimentação escolar: história e modalidades de gestão. RBPAE, v.29, n.1, p.137-155, 2013.

Natália Gebrim Doria é nutricionista pela Faculdade de Saúde Pública (FSP/USP) e mestre em ciências pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades (ESALQ-CENA) em Ecologia Aplicada da Universidade de São Paulo (Esalq/USP). Atua como assessora com foco em políticas de segurança alimentar e nutricional na Secretaria Municipal de Agricultura e Abastecimento de Piracicaba. Escreve a convite da Cátedra J. Castro/USP (Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis).

Paulo Eduardo Moruzzi Marques, Universidade de São Paulo (USP) – Piracicaba, São Paulo, Brasil. Docente do Programa de Pós-Graduação Interunidades (ESALQ-CENA) em Ecologia Aplicada da Universidade de São Paulo (Esalq/USP). Doutor em Sociologia (étude des sociétés latino-américaines) pelo Institut des Hautes Etudes de l’Amérique Latine, Paris, França. Pós-doutor em Sociologia pelo Laboratoire Dynamiques Sociales et Recomposition des Espaces (LADYSS), França.

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