Orçamento público e combate às desigualdades nas cidades

Pedro de Lima Marin
Sobre fundo amarelo escuro, termos e definições presentes no glossário. Os verbetes estão destacados em roxo e em negrito.
Como o melhor uso do recurso público pode diminuir desigualdades socioespaciais nos municípios? Quais os caminhos para o orçamento ser um aliado no combate a essas disparidades? Veja neste glossário como componentes relativos às contas públicas podem responder a essas questões
  • Desigualdades socioespaciais

    Boa parte das cidades brasileiras, sobretudo as metrópoles, apresenta uma geografia e um desenvolvimento interno desiguais. Nelas coexistem regiões mais e menos providas de serviços públicos e de políticas, criando-se disparidades sociais e espaciais. As periferias costumam concentrar os piores índices de vulnerabilidade, ao passo que as áreas mais centrais geralmente apresentam melhores números. Tais desigualdades afetam a qualidade de vida dos moradores, estreitando suas possibilidades de desenvolvimento e de ascensão social. Quem vive em bairros periféricos enfrenta dificuldades como as muitas horas gastas no transporte público e a falta de saneamento básico adequado, enquanto quem mora nas regiões mais centrais tende a se locomover melhor e a contar com mais infraestrutura urbana. Sobrepõem-se a isso os recortes de raça e de gênero, que, quando traduzidos em preconceito, agudizam a situação de vida já precária dos habitantes das áreas mais desprovidas de políticas e serviços.

    Essas diferentes disponibilidades de infraestrutura e de serviços são consequência de um processo de urbanização descontrolado, mas também de décadas de concentração dos investimentos públicos em determinadas regiões da cidade em detrimento de outras. Assim, as áreas desenvolvidas das cidades brasileiras são produto de um processo histórico de acúmulo de capital público, enquanto as áreas periféricas apresentam grandes deficits acumulados de recursos públicos investidos.

  • Unidades administrativas submunicipais

    Subprefeituras, distritos ou prefeituras regionais são unidades descentralizadas de base territorial, utilizadas pelas prefeituras para orientar o planejamento e a execução das políticas públicas e, em alguns casos, para descentralizar o poder político e administrativo e aproximar o poder público local dos cidadãos. Ainda que essas unidades tenham sido criadas para apoiar a presença do Poder Executivo no território e sejam instâncias que organizam a participação popular no planejamento e no orçamento públicos, ainda há pouca informação disponível sobre o que de fato está sendo planejado e gasto nessas localidades. Ou seja, embora a maioria das cidades esteja dividida em subprefeituras ou em distritos, não se sabe qual o volume de recursos que está sendo aplicado em cada unidade territorial.

    A desagregação dos dados do orçamento em unidades territoriais submunicipais permite uma melhor visualização e uma mensuração dos investimentos realizados em cada região da cidade. Saber claramente o montante do investimento público em saúde em determinado bairro, por exemplo, e os resultados concretos alcançados na saúde daqueles moradores ajuda a verificar se os valores aportados estão gerando melhorias reais ou não. Isso permite à população compreender melhor o destino do recurso público e também auxilia o gestor na correção de rotas de aplicação dos recursos, quando necessário.

  • Orçamento regionalizado

    Regionalizar o orçamento é pautá-lo pelas características, necessidades e especificidades de cada território ou bairro da cidade. Extrapola a lógica tradicional de distribuir os recursos públicos exclusivamente por áreas ou secretarias (educação, saúde, habitação, obras etc.), como acontece hoje no orçamento público. Ao considerar as desigualdades entre as diferentes regiões da cidade, o orçamento municipal regionalizado contribui para uma distribuição mais equânime e justa dos valores disponíveis porque leva em conta nos cálculos os territórios mais vulneráveis e precarizados e que, portanto, precisam receber mais recursos. Ele também evita que recursos continuem a ser destinados a áreas que já contam com mais investimentos, o que elevaria as desigualdades já existentes, e desse modo contribui para diminuir disparidades históricas entre os diversos bairros.

    Uma das vantagens do orçamento regionalizado é permitir ao(à) cidadão(ã) verificar claramente para quais localidades as verbas foram destinadas, aperfeiçoando-se assim o controle social do gasto público. Além disso, quando o território é um fio condutor das ações públicas e há um bom planejamento, os investimentos em infraestrutura, novos equipamentos sociais e ampliação de serviços urbanos podem criar um reforço positivo entre si, de modo coordenado e sinérgico, tornando-os mais efetivos e eficazes e menos custosos aos cofres públicos. Diferentes cidades no mundo, como Montreal, Buenos Aires, Cidade do México e Paris, já incorporam a regionalização no seu processo orçamentário.

  • Espaço orçamentário

    É sabido que o orçamento público é bastante “amarrado”, com a maior parte dos recursos comprometida com despesas de pessoal, com pagamento da dívida e com os contratos necessários para se manter o financiamento dos serviços públicos existentes. O conceito de “espaço orçamentário” refere-se à parte do orçamento que está disponível para a realização de novos investimentos ou para a expansão de serviços. É sobre esse recurso orçamentário que os(as) gestores(as) públicos(as), prefeito(a), vereadores(as) e secretários(as) têm maior poder de decisão. Esse espaço para “gastos novos” é importante porque pode ser usado pelos(as) gestores(as) para fomentar o desenvolvimento dos territórios mais vulneráveis do município, que mais precisam de recursos.

    Para estimar o quanto de orçamento está disponível para investimentos ou expansão de serviços a cada ano, somam-se a estimativa da receita e os recursos acumulados de exercícios anteriores e depois subtrai-se a estimativa das despesas contratadas. Chega-se ao final a uma estimativa de saldo para a expansão das despesas. Um bom planejamento do espaço orçamentário deve levar em conta critérios racionais e orientados para o atingimento de objetivos, a exemplo do Índice de Redistribuição Territorial do Orçamento Público.

  • Índice de Redistribuição Territorial do Orçamento Público

    Criado pela Fundação Tide Setubal e Rede Nossa São Paulo, o índice é composto por uma cesta de indicadores de deficit de infraestrutura urbana e visa mensurar as discrepâncias na qualidade de vida entre as várias subprefeituras de São Paulo. A proposta é que ele oriente o planejamento orçamentário da capital paulista, de forma que o território de cada subprefeitura receba investimentos e novos serviços públicos de acordo com suas necessidades, direcionando-se mais recursos para os locais mais vulneráveis, que mais necessitam deles. Baseia-se em itens como infraestrutura urbana (acesso a esgoto, número de domicílios em favelas e tempo de deslocamento casa-trabalho), vulnerabilidade social (Índice Paulista de Vulnerabilidade Social, homicídios e acidentes), área e população local.

    Pela estimativa dos técnicos, a cidade de São Paulo terá R$ 11,59 bilhões de espaço orçamentário para novos investimentos entre 2021 e 2024. Reordenando-se a lógica de distribuição dos recursos, Cidade Tiradentes, no extremo da Zona Leste, receberia, por exemplo, três vezes (mais de R$ 290 milhões) o aporte da Vila Mariana (R$ 96 milhões), na Zona Sul. O índice significa, portanto, um instrumento concreto para a prefeitura melhorar sua capacidade de planejamento e de execução e, com isso, assegurar que as políticas públicas levem à melhoria da qualidade de vida nas regiões mais vulneráveis. Algumas metrópoles, como a Cidade do México, já preveem em seus orçamentos anuais a distribuição de recursos por região, de acordo com indicadores sociais do território, como o nível de pobreza.

  • Orçamento sensível a gênero e raça

    O racismo e o machismo são características estruturais da sociedade brasileira que impactam o dia a dia dos indivíduos de diversas maneiras e aprofundam desigualdades. Mulheres têm de lidar com o machismo ao usarem o transporte público, ao terem uma dupla jornada de trabalho, ao acessarem os serviços de saúde, entre outras situações. De forma análoga, a população negra sofre com o racismo no mercado de trabalho, com a falta de representatividade nos espaços de poder e com as abordagens policiais violentas, entre outros. Mulheres negras são, assim, duplamente penalizadas.

    Essa multiplicidade de maneiras com que o machismo e o racismo atingem o cotidiano das pessoas demanda que as políticas públicas sejam desenhadas desde o princípio considerando suas intersecções e seu impacto para as questões de raça e gênero. O orçamento público sensível a gênero é uma metodologia defendida pela ONU Mulheres para garantir que a alocação de despesas para as diversas políticas públicas leve em conta as demandas específicas das mulheres. No mundo, há bons exemplos de cidades que adotaram este recorte. Berlim, Madrid e Mumbai contam com um anexo na sua lei orçamentária anual que analisa os impactos das despesas previstas para as principais políticas públicas e suas relações com as questões de gênero da cidade. A urgência do enfrentamento ao racismo na sociedade brasileira obriga os municípios a experimentarem e a expandirem os orçamentos sensíveis a gênero de forma a incorporarem também a variável racial.

  • Participação no orçamento

    Canais para o cidadão comum participar da construção do orçamento municipal de forma efetiva são essenciais porque as prioridades na alocação dos recursos precisam ser escolhidas por quem vive o cotidiano de cada região da cidade e sabe como as decisões governamentais afetam suas vidas. Há muitas formas de viabilizar essa participação, que vão desde audiências públicas até o orçamento participativo, método de deliberação direta sobre o destino do recurso público do qual o Brasil é pioneiro. Mas os canais de participação tradicionais mostram-se cada vez menos atraentes e têm se tornado espaços capturados por atores políticos tradicionais, como representantes de partidos políticos.

    Uma alternativa para levar novamente as pessoas ao debate público são os minipúblicos. Trata-se de um processo decisório coletivo e qualificado, com grupos pequenos e representativos da população de cada território, selecionados por sorteio, de forma aleatória. Nesse método, asseguram-se tempo e informações necessários para que cada um forme uma opinião ponderada, participe da construção de consensos e colabore para a tomada de decisões mais eficazes e duradouras pelo poder público. O minipúblico segue três etapas: informativa, deliberativa e de consolidação de resultados. Os participantes são contextualizados sobre o que precisa ser decidido, recebem dados relevantes e cenários, ouvem estudiosos, tiram dúvidas e dialogam com a mediação de especialistas. O método estimula a convergência e a formação de uma visão estratégica coletiva e embasada, fugindo-se de polarizações. Ao final, as pessoas recomendam as melhores soluções encontradas pelo grupo.

  • Intersetorialidade e desenvolvimento territorial

    A vulnerabilidade social é uma condição que demanda do poder público diversas intervenções conjugadas e concomitantes. A aprendizagem escolar de crianças em territórios vulneráveis, por exemplo, frequentemente requer uma atenção integral que proporcione a permanência, a aprendizagem efetiva e a formação de vínculos entre a criança e a escola, o que pode exigir ações de áreas diversas como cultura, assistência social, saúde, segurança pública e esporte. Não se trata, assim, de um problema apenas da área da educação. A intersetorialidade é, portanto, o trabalho conjunto de diferentes secretarias que compõem o governo municipal para atingir determinados objetivos.

    Infelizmente, uma prática ainda recorrente na administração pública consiste na atuação das secretarias de forma dividida e autônoma, sem se comunicarem, com uma lógica de áreas separadas (habitação, educação, saúde etc.). As metodologias do orçamento regionalizado e do orçamento sensível a gênero e raça favorecem a intersetorialidade, pois olham os recursos a serem alocados a partir das subdivisões da cidade ou da experiência de públicos específicos e convocam as diversas secretarias a pensarem juntas a melhor estratégia para intervirem, fazendo-se uso dos recursos disponíveis para cada região ou público e criando-se mais coesão e cooperação entre as áreas.

BIBLIOGRAFIA

Delibera Brasil, Fundação Tide Setubal e Rede Nossa São Paulo. (Re)ageSP — (Re)unindo a opinião cidadã e o planejamento governamental. São Paulo: 2021.

Fundação Tide Setubal e Pedro de Lima Marin. Regionalização do orçamento em grandes cidades: o estado da arte. São Paulo: 2019.

Fundação Tide Setubal e Rede Nossa São Paulo. (Re)ageSP — (Re)distribuição territorial do orçamento público: uma proposta para virar o jogo das desigualdades. São Paulo: 2020.

Fundação Tide Setubal e Rede Nossa São Paulo. (Re)ageSP — Virando o jogo das desigualdades em São Paulo. São Paulo: 2020.

Fundação Tide Setubal e Tomás Wissenbach. A dimensão territorial do orçamento público: orientações para regionalização do gasto nas cidades brasileiras. São Paulo: 2019.

Fundação Tide Setubal e Tomás Wissenbach. Gasto público no território e o território do gasto na política pública: um estudo sobre a territorialização do gasto público na cidade de São Paulo (2014-2017). São Paulo: 2018.

Fundação Tide Setubal e Tomás Wissenbach. Indicador de regionalização do orçamento municipal. São Paulo: 2019.

Pedro de Lima Marin é graduado em relações internacionais pela USP, mestre em gestão e políticas públicas e doutor em administração pública e governo pela FGV-SP. Atua como pesquisador e consultor em financiamento de políticas públicas, participação social e gestão por resultados. Realizou para a Fundação Tide Setubal o estudo Regionalização do orçamento em grandes cidades. É coordenador do programa de planejamento e orçamento público na mesma instituição.

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