BIBLIOGRAFIA BÁSICA

Tecnologia e disparidades salariais

Giovana Bigliazzi 27 de Fevereiro de 2024 (atualizado 27/02/2024 às 16h44)

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A pesquisadora Giovana Bigliazzi recomenda cinco leituras que contribuem para a compreensão da relação entre mudanças tecnológicas e o aumento das desigualdades

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Questões relacionadas às mudanças tecnológicas são interesse de pesquisa desde o século 19, com ênfase crescente à medida que a sociedade avança tecnicamente. Mais recentemente, percebeu-se a associação entre as mudanças tecnológicas e o aumento das desigualdades, propondo-se a hipótese de que novas tecnologias aumentam a demanda por trabalhadores altamente qualificados (cuja produtividade aumenta com o avanço tecnológico).

Essa é a origem da chamada “Skill-Biased Technological Change” (SBTC, em tradução livre, Mudança Tecnológica com Viés para Habilidades). Se a demanda por habilidades específicas aumenta devido à introdução de novas tecnologias, os trabalhadores com essas habilidades podem experimentar aumentos salariais, enquanto outros (aqueles cujas tarefas são mais facilmente substituídas via automação) podem enfrentar estagnação ou declínio salarial. Compreender essas mudanças é vital para orientar políticas públicas, educação e treinamento para preparar os trabalhadores para as demandas do mercado de trabalho em evolução.

Changes in Relative Wages, 1963-1987: Supply and Demand Factors

Lawrence Katz e Kevin Murphy (The Quarterly Journal of Economics, 1992)

Este trabalho seminal em SBTC analisa as mudanças na estrutura salarial e desigualdade dos Estados Unidos entre 1963 e 1987. Utilizando um modelo simples de oferta e demanda, os autores discutem as forças por trás dessas transformações. O modelo sugere que o rápido crescimento na demanda por trabalhadores mais educados e do sexo feminino desempenhou um papel significativo no aumento da desigualdade salarial. As mudanças na alocação de trabalho entre indústrias e ocupações também teriam contribuído para o aumento da desigualdade. Os autores sugerem que a disseminação de tecnologia da informação foi um fator importante nas mudanças na demanda relativa por trabalho qualificado dentro dos setores.

Essa transformação tecnológica teria favorecido a produtividade dos trabalhadores mais educados e mais qualificados, cujos salários teriam aumentado em relação aos salários dos trabalhadores menos educados e menos qualificados, que se beneficiaram menos dessas mudanças tecnológicas. Embora a diferença salarial entre homens e mulheres tenha diminuído, ela ainda persistiu. Este texto teve grande influência na literatura que investiga a SBTC, explorando a relação entre tecnologia, habilidades e desigualdade salarial. Muitos estudos subsequentes referenciam e constroem sobre as ideias apresentadas por Katz e Murphy neste artigo.

The Race Between Education and Technology

Claudia Goldin e Lawrence Katz (Harvard University Press, 2008)

Claudia Goldin e Lawrence Katz são conhecidos por suas contribuições para a compreensão da relação entre educação, tecnologia e desigualdade salarial. Goldin recebeu o Prêmio Nobel em Economia em 2023, em reconhecimento ao seu trabalho pioneiro em economia do trabalho, gênero e história econômica. O também premiado livro “The race between education and technology” (em tradução livre, “A corrida entre educação e tecnologia”) analisa como a educação e a estrutura salarial nos EUA evoluíram conjuntamente no último século. Os autores destacam o papel crucial do capital humano (qualificação de mão-de-obra) para a ascensão econômica dos EUA, e exploram como as mudanças tecnológicas, a educação e a desigualdade salarial estiveram, segundo eles, envolvidas em uma espécie de “corrida no século 20”.

Merece destaque a comparabilidade dos principais achados e argumentos dos autores em relação ao trabalho anterior de Katz e Murphy (1992), cuja estratégia empírica foi replicada. Goldin e Katz comentam que a rápida ascensão da desigualdade nos EUA fomentou trabalhos investigando os fatores explicativos, sendo a mudança tecnológica enviesada para habilidades (especialmente o uso de computadores) um deles. A ideia central é relativamente simples: tecnologias complexas favorecem indivíduos com mais educação e maior qualificação, logo a desigualdade aumenta quando a oferta de habilidades não acompanha a demanda. Embora a tecnologia seja um fator na expansão da desigualdade nas últimas décadas, a principal razão foi a diminuição do crescimento relativo da oferta de trabalhadores com curso superior e altamente qualificados desde os anos 80. Infelizmente, até a data de publicação deste texto, o livro não possui tradução em português.

Skill‐Biased Technological Change and Rising Wage Inequality: Some Problems and Puzzles

David Card e John Dinardo (Journal of Labor Economics, 2002)

Os autores questionam a hipótese de que as (então) novas tecnologias de computação sejam responsáveis pelo aumento da desigualdade salarial. Discutem alguns dos problemas e enigmas associados à hipótese de SBTC e exploram outras dimensões da desigualdade salarial, não explicadas por ela. Entre os problemas destacados, os autores argumentam que: (1) os aumentos na desigualdade salarial geral nos anos 1980 não persistiram na década de 1990, apesar dos avanços contínuos em computação; (2) a SBTC não explica a estabilidade da disparidade racial, nem a redução das desigualdades de gênero em todos os grupos educacionais; (3) também falha em explicar o aumento das diferenças em educação entre trabalhadores mais jovens e mais velhos; e (4) inovações em tecnologia da computação não necessariamente aumentam a demanda relativa por trabalhadores com treinamento especializado em computação (pelo contrário, os autores mostram dados de queda no salário relativo de graduados em ciência da computação e engenharia). A conclusão é que, embora a hipótese de SBTC seja uma explicação plausível para o aumento da desigualdade salarial nas décadas de 1980 e 1990, ela não é a explicação única e completa (como seus defensores poderiam postular).

Os autores argumentam que outros fatores, como mudanças na estrutura do mercado de trabalho e políticas governamentais (em particular, o salário mínimo, a diminuição da sindicalização e a realocação de mão de obra induzida pela recessão de 1982), também desempenharam papel importante na evolução da desigualdade salarial; tais fatores devem ser levados em conta para explicar satisfatoriamente o crescimento das desigualdades no mercado de trabalho.

Tasks, Automation, and the Rise in U.S. Wage Inequality

Daron Acemoglu e Pascual Restrepo (Econometrica, 2022)

Este trabalho investiga como tecnologias de automação estão associadas ao aumento da desigualdade nos Estados Unidos. Os autores apresentam um modelo que ilustra como a automação e outros avanços tecnológicos afetam os salários quando passam a realizar tarefas antes desempenhadas por pessoas, deslocando esses trabalhadores para outras tarefas ou para o desemprego, e reduzindo seus salários. A automação contribuiu significativamente para as mudanças na estrutura salarial dos EUA nas últimas quatro décadas, com evidências de que trabalhadores com qualificação média e baixa foram desproporcionalmente afetados, levando ao aumento da desigualdade salarial. Entre os principais resultados, mostram que entre 50% e 70% das mudanças salariais dos EUA nas últimas quatro décadas devem-se à automação. Ela afetou negativamente o grupo de trabalhadores especializados em tarefas rotineiras, reduzindo sua remuneração. Grupos de trabalhadores não substituídos por máquinas (em particular os mais escolarizados) desfrutaram de ganhos salariais. Argumenta-se que políticas visando melhorar a educação e as habilidades dos trabalhadores podem ajudar a mitigar os efeitos negativos da automação.

Destaca-se a importância de políticas que aumentem o poder de barganha dos trabalhadores e reduzam a concentração de mercado para reduzir a desigualdade salarial. Este estudo é importante porque representa a mais recente investigação sobre o tópico. Trabalhando com dados específicos dos EUA, os autores propõem uma nova perspectiva para entender a desigualdade salarial, contribuição importante para a literatura de SBTC. Mais especificamente, discutem como mudanças tecnológicas como a automatização podem desfavorecer trabalhadores menos qualificados, substituindo-os por máquinas.

The Changing Nature of Work and Inequality in Brazil (2003-19): a Descriptive Analysis

Sérgio Firpo, Alysson Portella, Flávio Riva e Giovanna Úbida (UNU-WIDER, 2021)

A lista não estaria completa sem um estudo sobre países em desenvolvimento. Este trabalho é um estudo de caso para o Brasil, contribuindo para compreender como as diferentes habilidades e tarefas impactam a evolução do emprego e a distribuição de salários no país. O estudo foi publicado como capítulo do livro “Tasks, skills, and institutions: the changing nature of work and inequality” (2023), que reúne pesquisas focadas nos desafios particulares enfrentados pelos países em desenvolvimento. O Brasil é um caso atrativo para essa investigação devido aos elevados índices de desigualdade que caracterizam a história do país.

O período analisado (2003 a 2019) contempla uma fase de queda nas desigualdades de rendimentos (explicada principalmente por mudanças na estrutura de remuneração desde os anos 1990), seguida de novo crescimento a partir de 2015 (determinado principalmente por mudanças no perfil dos trabalhadores, com aumento da qualificação). Os autores documentam mudanças na estrutura de emprego no Brasil nesse período, destacando as tarefas que caracterizam as diferentes ocupações no mercado de trabalho. Entre os resultados principais, nota-se que trabalhadores com empregos mais intensivos em tarefas rotineiras têm menores rendimentos. A diferença de rendimento entre as ocupações é quase totalmente explicada pelas suas diferenças na intensidade de tarefas de rotina (ocupações mais intensas em rotina são mais fáceis de automatizar com robôs ou computadores). Os autores argumentam que seus resultados reforçam conclusões anteriores com relação ao papel dual da educação sobre a desigualdade. Mais estudos são necessários para esclarecer esses resultados ambíguos no Brasil.


Giovana Bigliazzi é doutoranda em economia do desenvolvimento pela FEA/USP e mestre em Economia pela UFABC. Atua como pesquisadora auxiliar no Neri (Núcleo de Estudos Raciais do Insper).