Cientistas políticos afirmam que a ciência política relegou o problema das relações raciais a uma espécie de limbo disciplinar por muito tempo. Se os sentidos da democracia já eram um dos mais importantes temas da ciência política muito antes da universalização do governo representativo a partir de meados do século 20, o mesmo não pode ser dito em relação aos obstáculos que os negros enfrentam em seu anseio de participação efetiva na democracia. Mesmo os aspectos políticos de uma estrutura racialmente desigual tiveram pouca atenção da ciência política. Para imaginarmos melhor esse abismo, vale a pena relembrar a assertiva do autor de “O espírito das leis”, de 1748, sobre a escravização dos negros ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, o liberalismo iluminista raiava no horizonte europeu como o sol da manhã. Montesquieu justifica a exclusão dos negros da divisão de poderes pela doutrina da inferioridade biológica, e o faz com requintes de ironia: “aqueles a que nos referimos são negros da cabeça aos pés e têm o nariz tão achatado que é quase impossível ter pena deles”.
Claro, quase três séculos de história nos distanciam dessa visão racista e comum em sua época. Apresento nesta bibliografia trabalhos que são insígnias da ruptura com a dissociação entre relações raciais e política, na medida em que abordam de forma crítica os problemas da participação dos negros na democracia representativa. Trabalhos que vão da teoria à análise política de tais problemas, e fazem pontes com a sociologia histórica das relações entre brancos, negros e mestiços. Uma referência não está aqui, “Raça e Eleições no Brasil”, de Luiz Augusto Campos e Carlos Machado, discutida em outra bibliografia básica dessa plataforma. Estudiosos da democracia irão ver que os trabalhos a seguir se destacam porque confrontaram-na com as relações raciais. Pretenderam assim diminuir a distância que um dia separou os estudos de relações raciais e política.
A integração do negro na sociedade de classes
Florestan Fernandes (Contracorrente, 2021)
É um importante clássico das ciências sociais por ter sido o primeiro a apontar causas e efeitos da desigualdade social verificada entre brancos e negros, muitas vezes chamada de concentração racial do prestígio, da renda e do poder pelos brancos. Com lentes focadas na cidade de São Paulo, o estudo percorre um longo período abrangendo da abolição da escravidão ao presente do autor, vivido na década de 1960. Florestan quer entender o problema estrutural de porque não houve a integração dos negros na sociedade que se desenvolve com a formação do capitalismo moderno. Assume a leitura da sociedade de classes, do capitalismo que a estrutura, como um sistema aberto, competitivo e democrático – por isso mesmo cabe ao livro a avaliação de ser uma referência do pensamento liberal e reformista nas ciências sociais brasileiras. Analisa a perpetuação indefinida do racismo disfarçado, ao modo brasileiro, lado a lado com a trajetória da ação coletiva de movimentos negros. Percebe os bloqueios ao progresso da integração social como um dilema para o sistema democrático. Trocando em miúdos, esse dilema quer dizer que a separação entre igualdade jurídica e desigualdade real, a situação de racismo, pobreza e exclusão política dos negros, não mais deveria existir se por democracia entendemos a igual expressão de preferências de todos os cidadãos.
O livro ganhou uma nova edição que vem acompanhada de prefácio de grande fôlego, de quase 50 páginas, por Mário Medeiros e Antonio Brasil Júnior, intitulado “Racismo e limites à democracia em ‘A integração do negro na sociedade de classes’”. Como os próprios autores dizem, procuram reabilitar a interpretação do sociólogo no debate público do racismo e antirracismo, antes afastada principalmente por críticas à sua “confiança exagerada” no processo de modernização. Mas não se pode confundir, concordando com os autores do prefácio, avanços sociais apenas parciais com todo o ideal normativo de democracia moderna, liberal e igualitária. É preciso antes entender que o livro é um estudo de como brancos e negros, juntos, poderiam alcançar esse ideal.
Classes, raças e democracia
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (Editora 34, 2002)
O livro reúne artigos que discutem temas ligados a classes sociais, raças ou grupos de cor, pobreza, desigualdades, identidades, ação afirmativa, democracia racial e insulto racial. Apesar dessa diversidade temática, não se pode dizer que o livro toca apenas indiretamente na questão da democracia face a desigualdade entre brancos e negros. Para defender sua posição favorável à implantação de políticas afirmativas de corte racial, Antonio Sérgio primeiro discute o conceito de raça de uma forma que mais se aproxime de seus usos na sociedade brasileira. Argumenta que a situação de pobreza dos negros é decorrência tanto da discriminação racial quanto de sua condição de classe. A diminuição desse problema exigiria ações e políticas particularmente antirracistas.
Outro ponto alto do livro é o mergulho profundo do autor em busca das origens da ideia de democracia racial brasileira, no curso do qual não se entrega a sentimentos e emoções calorosos que cercam esse debate. Aponta diferentes significados que a relação entre mestiçagem e democracia assumiu na história brasileira, do mito das três raças no século 19 ao país sem racismo brutal no século 20. Essa discussão é importante para a compreensão do problema da democracia e desigualdade racial, pois podemos entender melhor os sentidos da democracia cristalizados nas ciências sociais brasileiras. Democracia racial, de base popular e étnica, geralmente não é vista como a mesma coisa que democracia política, forma de governo centrada na regra geral. Precisamos entender tais diferenças teórico-conceituais se quisermos chegar à complexidade da questão da democracia no Brasil, país de forte desigualdade também política entre brancos e negros.
Desigualdades e democracia: o debate da teoria política
Luis Felipe Miguel (org.) (Editora Unesp, 2016)
Essa coletânea traz ensaios que abordam de forma crítica as principais teorias da democracia. Os autores dão centralidade, em suas análises críticas, àquilo que entendem ser constitutivo de formas diferentes e inter-relacionadas de desigualdade: as dimensões de gênero, raça, classe e poder fundamentalmente. As teorias do elitismo, pluralismo, republicanismo, deliberacionismo, participacionismo, comunitarismo e marxismo são analisadas tendo-se como amarra as formas de desigualdade mencionadas. O livro é interessante justamente porque particulariza, destrincha complexas teorias e conceitos políticos, oferecendo análises sobre as limitações da democracia em função da desigualdade política, de gênero, de raça e de classe. Estudiosos da democracia e do racismo podem conhecer melhor a crítica de cientistas políticos às correntes democráticas que desconsideram como a desigualdade racial se combina com a exclusão política dos negros, bem como reproduz o estado de desigualdade política entre brancos e negros. Considera-se como a maior expressão dessa situação antidemocrática o problema da sub-representação política dos negros nos espaços de poder, ou seja, nas instituições políticas da República, no caso brasileiro. É aqui que aconteceria o teste de fogo da democracia representativa, do qual Florestan Fernandes já nos falava, e que ganha tratamento particular em capítulos desta coletânea.
Elite política negra no Brasil: relação entre movimento social, partidos políticos e Estado
Flávia Rios (Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade de São Paulo, 2014).
Com esta tese de doutorado, chegamos ao ponto em que carências se transformam em lutas. Rios faz pontes entre sociologia, ciência política e história e estuda o processo de formação do movimento negro contemporâneo e suas contra-ideologias. O estudo avança para a luta do movimento social por reconhecimento na esfera pública, chegando aos desdobramentos dessa luta em termos de institucionalização em partidos políticos e órgãos de Estado a partir da redemocratização. A ação coletiva do movimento negro é abordada em quadrantes políticos, de associativismo, de luta pelo poder, de organização de interesses, de ativismo institucional, de representação política no Parlamento.
A Constituinte de 1988 é o momento em que o problema da sub-representação política dos negros é enfrentado por forças político-partidárias favoráveis a demandas históricas democráticas do movimento negro. O que antes era um quadro de carência política passa a ser uma nova situação parlamentar: a emergente representação política negra. Um desafio explicativo para a ciência política, ao qual Rios responde com análise empírica das relações entre a elite política negra, PMDB, PDT, PT e o Parlamento.
As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição
Mário Theodoro (org.) (Ipea, 2008)
Economistas e sociólogos se juntam nesse livro a oito mãos para uma análise histórica das consequências do racismo no desenvolvimento da estrutura social. Tendo como fio condutor essa desigualdade racial, analisam temas relacionados ao mercado de trabalho, regime político, mobilidade social, demografia, estratificação social e – o que mais nos interessa a essa altura da bibliografia – as políticas públicas de promoção da igualdade racial e construção de um futuro melhor para os negros. Os autores põem em questão o modelo de Estado, democracia e políticas públicas que desconsiderava efeitos da discriminação racial na reprodução da pobreza. Partem depois para a trajetória de políticas inclusivas, chegando às primeiras que foram coordenadas pela Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial).
Alguns podem achar que já apresentamos esses temas no início da bibliografia, mas é preciso ter clareza de que os autores desta coletânea são críticos de Florestan Fernandes e mais próximos de Carlos Hasenbalg em “Discriminação e desigualdades raciais no Brasil”. Saber disso é interessante porque o debate tende a crescer com divergências teóricas e os pesquisadores podem desenvolver sua própria visão.
De certa forma, podemos dizer que as análises de “As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil” são atualizadas por outros estudos e pesquisas do Ipea, como o livro A construção de uma política de promoção da igualdade racial, organizado por Luciana Jaccoud, e a seção chamada Igualdade Racial presente em vários números do Boletim de Políticas Sociais: Acompanhamento e Análise.