Mariana Morais Zambom
Os sentidos da ressocialização em decisões no Superior Tribunal de Justiça
Dissertação
Os sentidos da ressocialização em decisões sobre a gestão da sanção no Superior Tribunal de Justiça
autora
orientadora
Maíra Rocha Machado
Área e sub-área
Direito penal, Execução penal
Defendido em
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, em 04/08/2022
Esta dissertação, defendida na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, analisa como os argumentos sobre ressocialização e conceitos correlatos (reinserção social, reintegração social, reeducação, readaptação social e reabilitação) são articulados em decisões do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
A pesquisa baseou-se na análise de 134 decisões do STJ proferidas entre 2019 e 2020, coletadas no portal eletrônico do STJ, envolvendo pedidos de acesso a direitos durante o cumprimento da pena de prisão
A qual pergunta a pesquisa responde?
Como os argumentos sobre ressocialização e conceitos correlatos (reinserção social, reintegração social, reeducação, readaptação social e reabilitação) são articulados em decisões do STJ (Superior Tribunal de Justiça) para conceder ou negar direitos a pessoas em cumprimento da pena de prisão, principalmente, progressão de regime e livramento condicional?
Por que isso é relevante?
No sistema de justiça criminal, a prisão é a pena de referência, tendo como uma de suas justificativas a ressocialização, cuja proposta - que sofre uma série de críticas - consiste em promover mudanças na forma de pensar e no comportamento da pessoa durante o período em que permanece presa, como condição para o retorno à vida no ambiente externo à prisão.
O artigo 1º da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) estabelece, como uma das finalidades do cumprimento de pena, “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Essa parte do dispositivo aponta para a exigência de ressocialização, que deverá orientar todas as medidas e direitos previstos na legislação, bem como a atuação do Judiciário ao longo da execução penal. Assim, a função ressocializadora da pena, ao ter sido projetada para um ambiente fechado, adota a lógica do ""excluir para incluir"".
Diante de um cenário em que o Brasil, segundo o World Prison Brief (2021), possui a terceira maior população carcerária do mundo, o estudo empírico de decisões judiciais permitiu compreender criticamente o discurso da ressocialização e os sentidos atribuídos a este argumento. A análise iluminou a função que a ressocialização desempenha nos julgados para formar os entendimentos do STJ a respeito da execução da pena de prisão e do acesso a direitos que permitem modificar a forma de seu cumprimento, com o alcance de alguma liberdade (progressão de regime, livramento condicional etc).
O foco no STJ permitiu compreender as controvérsias em torno do cumprimento da pena de prisão nas instâncias inferiores (juízo de primeiro grau e tribunais estaduais) e o modo como elas foram decididas pelo STJ, instância do Judiciário que exerce grande influência na formação de entendimentos jurisprudenciais.
Resumo da pesquisa
A pesquisa baseou-se na análise de 134 decisões do STJ proferidas entre 2019 e 2020, coletadas no portal eletrônico do STJ, envolvendo pedidos de acesso a direitos durante o cumprimento da pena de prisão. A análise apoiou-se na teorização fundamentada nos dados, método que busca construir novas relações de caráter teórico entre os dados empíricos, em um processo de divisão, conceitualização e categorização. No campo teórico, a pesquisa dialogou com a Racionalidade Penal Moderna, que busca descrever e evidenciar os modos de raciocínio e as ideias do sistema de direito criminal moderno no Ocidente. A pesquisa identificou dois usos do termo ressocialização: referência à função da prisão; e referência às expectativas de comportamento estabelecidas pelo Judiciário e que a pessoa presa precisa atender para demonstrar que o objetivo de ressocialização está sendo atingido ou foi alcançado para a concessão de progressão de regime e livramento condicional. As expectativas direcionadas à pessoa presa foram: desenvolver consciência dos atos (arrependimento); atividades no cárcere (trabalho e estudo); atitudes individuais (conviver de forma harmoniosa); habilidades emocionais (controle da ansiedade, tolerância a frustrações) e perspectivas fora da prisão (planos futuros, vínculos familiares preservados). Foram constatados diferentes níveis de exigências (desde indícios até certeza) relacionados às expectativas de comportamento para a concessão. As mesmas expectativas podem ser lidas e interpretadas de diferentes maneiras, a depender do/a julgador/a: uma mesma pessoa pode alcançar o direito pleiteado por haver “indícios” de que as expectativas foram atingidas ou ser mantida em regime de cumprimento de pena mais gravoso pela ausência de certeza quanto à satisfação dessas expectativas.
Quais foram as conclusões?
A construção de um retrato do uso da ressocialização em decisões do STJ permitiu identificar expectativas direcionadas à pessoa como condição de demonstração da ressocialização para o alcance da progressão de regime e do livramento condicional, servindo como indicadores da necessidade de mudanças nos comportamentos, valores e personalidade, com exigência de plano futuro ainda dentro do cárcere, em um ambiente tão sem perspectiva. Ao direcionar a responsabilidade pela ressocialização à pessoa presa, os critérios identificados configuram um ônus no sentido de exigir que ela desenvolva e comprove as mudanças impostas pelo Judiciário. Trata-se de uma “missão impossível”: comprovar o desenvolvimento de critérios genéricos e abstratos, sem considerar as condições estruturais das prisões. A uniformização do que a pessoa deve desenvolver para provar que está ressocializada ou no caminho da ressocialização (exigência feita, muitas vezes, no regime fechado) provoca um apagamento dos diferentes perfis (raça, gênero e classe) e das diferentes trajetórias, partindo do pressuposto de que todas são iguais e estão nas mesmas condições de alcançarem o que foi estabelecido. Diante da identificação de elevada quantidade de negação dos direitos pleiteados, buscou-se problematizar a ressocialização em prejuízo da pessoa presa. Constatou-se que ela não está sendo pensada na chave dos direitos, mas funciona na do mérito: é vista menos como sujeito de direito e mais como sujeito a ser tratado e recuperado. Ainda que o STJ tenha tido, em alguns casos, uma atuação favorável à pessoa com base em um olhar para os problemas sociais, observou-se que a ressocialização está funcionando, majoritariamente, como uma categoria discursiva que justifica a continuidade da prisão e impede o acesso a direitos.
Quem deveria conhecer os seus resultados?
Profissionais do sistema de justiça criminal que atuam na execução penal, pertencentes, principalmente, ao Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública. Os argumentos desenvolvidos na pesquisa poderão fornecer subsídios ao aprimoramento da racionalidade de suas decisões e atuações institucionais, baseando-se em critérios legalmente estabelecidos, características e contexto de vida da pessoa presa, além de condições estruturais dos presídios.
Pesquisadoras/es que, dentro do campo prisional, estão voltadas/os ao estudo de temas como: cumprimento da pena de prisão, direitos da pessoa presa (progressão de regime, livramento condicional, saída temporária etc.), fundamentação judicial e racionalidade penal moderna.
Entidades da sociedade civil ligadas à defesa dos direitos da pessoa presa. A pesquisa fornece elementos para um retrato do funcionamento do sistema de justiça criminal, ao revelar a resistência do Judiciário em conceder direitos ao longo do cumprimento de pena, além de explicitar as contradições do discurso da ressocialização, mobilizado majoritariamente em prejuízo da pessoa presa.
Referências
Allen, Francis. The Decline of the Rehabilitative Ideal in American Criminal Justice. Cleveland State Law Review, v. 27, p. 147-156, 1978.
Cullen, Francis T.; Gilbert, Karen E. Reaffirming rehabilitation: crisis in criminal justice policy. 2. ed. Waltham: Elsevier, 2013 [1982].
Garcia, Margarida. A teoria da racionalidade penal moderna: um quadro de observação, organização e descrição das ideias próprias ao sistema de direito criminal. In: DUBÉ, Richard; Garcia, Margarida; Machado, Maíra Rocha (orgs.). A racionalidade penal moderna: reflexões teóricas e explorações empíricas. Tradução: Ana Cristina Arantes Nasser e Bruna Gibson. São Paulo: Almedina, 2020. p. 43-77.
Machado, Maíra Rocha. A pessoa-objeto da intervenção penal: primeiras notas sobre a recepção da criminologia positivista no Brasil. Revista Direito GV, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 79- 90, 2005.
Pires, Alvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos estudos CEBRAP, n. 68, p. 39-60, mar. 2004.
Mariana Morais Zambom é doutoranda e mestra em direito e desenvolvimento pela FGV Direito SP, com o apoio da bolsa Mario Henrique Simonsen de Ensino e Pesquisa. Foi bolsista Fapesp, com estágio de pesquisa na Université Laval, em Quebec (Canadá), com a Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior. É formada em Direito pela Universidade de São Paulo. Possui dupla graduação pela Université Jean Moulin Lyon III (França), por meio do Programa PITES (Parceria Internacional Triangular de Ensino Superior).