Juliana Oliveira Silva
Os Korubo do Vale do Javari: uma etnografia sobre contato na Amazônia ocidental
TESE
Os Korubo descobrem os brancos: uma etnografia sobre contato na Amazônia ocidental
autora
orientadoras
Bruna Franchetto e Luisa Elvira Belaunde
Área e sub-área
Antropologia social, Etnologia indígena
Defendido em
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 25/07/2022
Esta tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, é a primeira etnografia sobre os Korubo do Vale do Javari, segunda maior terra indígena do Brasil, localizada no estado do Amazonas, fronteira entre o Brasil e o Peru.
Essa terra indígena concentra sete povos contatados (Matis, Matsés, Marubo, Korubo, Kanamari, Kulina-Pano e Tsohom-dyapa) e o maior registro de povos indígenas em ‘isolamento’, isto é, sem estabelecer relações diretas e contínuas com o Estado brasileiro e suas instituições, como a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena). Os Korubo ganharam notoriedade pelo histórico de guerra e, recentemente, através das lentes do fotógrafo Sebastião Salgado. Contudo, jamais haviam sido alvos de estudos antropológicos. O que sabíamos sobre eles, até recentemente, era uma extensa narrativa sobre conflitos com os não-indígenas, os ‘brancos’.
Historicamente, os Korubo resistiram à penetração das frentes extrativistas nessa porção da Amazônia brasileira, guerreando com os brancos utilizando suas bordunas, armas de guerra chamadas regionalmente de ‘cacetes’. Disto decorre alguns estereótipos que funcionam como designações pejorativas, como ‘caceteiros’, ou que qualificam negativamente o seu modo de vida, como ‘arredios’. Hoje, a maior parte dos Korubo é considerada pela Funai como sendo de ‘recente contato’, enquanto outra parcela deles permanece em ‘isolamento’. Os Korubo de recente contato somam cerca de 150 pessoas distribuídas nos rios Ituí e Coari, no interior da terra indígena. No passado, eles perderam praticamente todos os seus anciões. Hoje, configuram uma população jovem: 45.05% do total têm entre 0 e 9 anos de idade. Vivem da agricultura de coivara, e realizam expedições de caça, pesca e coleta. Atualmente, deparam-se com os desafios após os eventos de contato com o Estado brasileiro, buscando cada vez mais compreender os brancos, seus conhecimentos e suas tecnologias. Por isso, o foco da tese é o contato interétnico.
A qual pergunta a pesquisa responde?
A tese reflete sobre o que acontece quando diversos grupos familiares passam a viver juntos após estabelecerem relação direta com o Estado brasileiro, ou seja, o que acontece quando indígenas saem do isolamento na floresta amazônica e passam a ter contato com as instituições estatais. Dessa questão decorrem outras: Como os Korubo veem os brancos? Como grupos familiares distintos estão construindo o sentimento de serem um só ‘povo’? Como relacionam-se com o conhecimento, os bens e as tecnologias dos brancos?
Por que isso é relevante?
Há quem duvide de que ainda hoje existam indígenas isolados. Quando falamos a palavra ‘isolados’, a imagem que vem à mente de algumas pessoas costuma ser a de indígenas seminus, alimentando-se da caça, pesca e coleta, sem consumir mercadorias e alimentos industrializados. Sem dúvidas, existem indígenas isolados. Somente no Brasil, há 114 registros da presença de indígenas isolados, sobre quem não sabemos praticamente nada. Destes registros, 28 são confirmados pelo órgão indigenista estatal, a Funai. A Amazônia brasileira abriga a maior concentração de indígenas isolados do mundo inteiro, justamente, os guardiões dessa imensa riqueza. Grande parte deles está na Terra Indígena Vale do Javari, Amazonas.
Os isolados sabem que nós, não-indígenas, existimos e escolhem não se relacionar conosco, muitas vezes, devido a contatos interétnicos traumáticos ocorridos no passado. Essa recusa é evidenciada em uma linguagem não verbal, como as armadilhas e tapagens (ou barreiras, bloqueios feitos com galhos e troncos de árvores) deixadas na floresta. No Brasil, quem deve verificar esses vestígios para mapear os territórios onde há isolados é o Estado brasileiro por meio da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados, da Funai. Após um longo processo, hoje, a atual política indigenista brasileira preconiza o ‘não-contato’ com indígenas isolados, exceto em situações em que a vida destes esteja ameaçada. Cabe ao órgão indigenista estatal mapear sua presença por meio de sobrevoos, expedições na floresta e técnicas, como geoprocessamento. Esse mapeamento visa a fiscalização territorial para proteger esses locais. Assim, o Estado tem o dever de assegurar a esses indígenas o seu direito à recusa em se relacionar conosco, isto é, a permanecerem isolados.
Infelizmente, o tema do isolamento e do contato permanece ainda nebuloso para muita gente e restringe-se a discussões entre os profissionais que atuam nessa área. É necessário que esse tema alcance um público mais amplo. A Amazônia não é um grande vazio demográfico e, por acaso, um bioma que concentra grande parte da biodiversidade mundial. Trata-se de um local onde residem famílias inteiras que protegem essa imensa floresta com suas próprias vidas, mantendo-a de pé. Para os indígenas, a floresta amazônica é a morada de seres diversos e espirituais, local onde enterram seus ancestrais e vivem em simbiose com aquilo que chamamos de natureza. Todavia, a vida dos povos amazônicos está sob constantes ataques.
Em junho de 2022, o mundo inteiro olhou para uma porção da Amazônia, o Vale do Javari, onde residem os Korubo. Naquele mês, todos os veículos de comunicação mostraram o assassinato brutal do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dominic Phillips no rio Itaquaí, próximo à entrada da terra indígena. Esses assassinatos, dentre aqueles ocorridos em outras localidades da Amazônia, escancararam para o mundo alguns crimes e dilemas que os indígenas que ali residem deparam-se o tempo inteiro, vivendo sob ameaças de morte diante de ilegalidades em seu território, como o garimpo, o comércio de caça e pesca, e a rede de narcotráfico vigente na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.
Esta tese toca na confluência de questões que envolvem contato e isolamento tendo como pano de fundo o Vale do Javari. Embora o órgão indigenista estatal tenha a expertise no tema dos isolados, a tese destaca que a política indigenista brasileira precisa aprimorar-se quando o tema é o pós-contato. Historicamente, a política indigenista brasileira avançou em sua estratégia de ‘não-contato’ com isolados e dos protocolos sanitários adotados em situações de contato, porém, o Estado deixa a desejar quando os indígenas saem do isolamento e, estabelecendo relações diretas e contínuas conosco, passam a demandar o acesso às políticas públicas. Por que os Korubo são um caso singular para essa reflexão? Eles ilustram não só o que chamo de ‘pluricontato’, mas também vivenciavam um novo evento de contato durante o período da minha pesquisa de campo, em 2019.
No caso dos Korubo, quando o órgão indigenista estatal passou a atuar na região, nos anos 1970, não os encontrou reunidos e fez um contato só. Ao contrário, foram seis eventos de contato entre o Estado brasileiro e grupos familiares korubo, ocorridos em sub-bacias hidrográficas distintas no interior do Vale do Javari e em períodos diferentes ao longo dos anos 1996, 2014, 2015 e 2019. Ao longo desse período, grande parte dos Korubo deixou de ser ‘isolada’ e passou a ter relações permanentes com as instituições estatais. Uma parte dos Korubo ainda permanece em isolamento na terra indígena. Desse modo, o que hoje chamamos de ‘os Korubo’ são um conjunto de grupos familiares, contatados em períodos e locais distintos, que passaram a viver juntos nos rios Ituí e Coari. O baixo curso do rio Ituí é uma das áreas da terra indígena mais ameaçada por invasores.
A tese baseia-se em pesquisa de campo etnográfica, ou seja, uma vivência prolongada nas aldeias korubo do rio Ituí que contribui para a desconstrução de estereótipos, como ‘caceteiros’ e ‘arredios’. Os Korubo têm uma história para contar. Após um longo histórico de violências com invasores da área indígena, os grupos familiares korubo estão se reconstruindo em uma região da Amazônia, o Vale do Javari, ameaçada por inúmeros fatores, ainda carente da atuação eficaz do Estado brasileiro. Pela primeira vez após décadas de conflitos, eles estão em outra modalidade de relação conosco, sem fugas ou guerras. Nesse processo, os Korubo estão em busca de nos compreender, saber quem somos e por qual motivo temos determinados comportamentos, entender como as coisas que produzimos funcionam. Mas isso não quer dizer que eles queiram deixar de ser Korubo para se tornarem brancos. É preciso que o Estado brasileiro cumpra o seu dever constitucional de fiscalizar e proteger os territórios indígenas, aprimorando os mecanismos para assegurar aos povos amazônicos o acesso às políticas públicas, uma vez que passam a se relacionar conosco de modo direto e contínuo.
Resumo da pesquisa
Esta etnografia sobre os Korubo resulta de uma pesquisa de campo realizada entre janeiro de 2019 e março de 2020. Ao longo desse período, residi em duas das quatro aldeias korubo localizadas no rio Ituí e também acompanhei os Korubo em idas à Tabatinga (uma das cidades no entorno da terra indígena) para tratamentos de saúde, retiradas de documentos de identificação pessoal, recebimento de pagamentos e realização de compras. Foi nesse processo que percebi que naquele momento os Korubo estavam interessados em falar sobre contato interétnico.
Por um lado, os Korubo estão vivenciando o início de outro formato relacional com os brancos, que não é mais o da guerra, e sim o da troca, em que há um grande interesse deles pelas mercadorias, bens, serviços e conhecimentos não-indígenas, como aprender a língua portuguesa, os números e compreender as transações monetárias. Por outro lado, durante a pesquisa de campo, havia uma parcela dos Korubo que estava sendo contatada em março de 2019, no rio Coari. Os Korubo do rio Ituí falavam o tempo inteiro sobre aqueles do rio Coari, ansiando conhecê-los, comparando-se e analisando em que medida seria possível construir parentesco com eles. Essa é uma questão central da tese, pois os distintos grupos familiares korubo contatados pelo Estado em períodos e locais diferentes não necessariamente sentem-se ‘parentes’, tampouco um só ‘povo’. Isso porque o parentesco não é apenas sangue e genealogia, mas consiste em viver junto, comer junto, compartilhar substâncias etc.
A tese possui seis capítulos divididos em três partes. Na Parte 1, apresento alguns encontros entre os Korubo e os brancos durante o período de extração da borracha, madeira e petróleo no Vale do Javari, e os seis eventos de contato com o órgão indigenista estatal. Na Parte 2, analiso como tempo e espaço são articulados no processo de grupos familiares korubo construírem parentesco entre si, com ênfase na disposição das casas em uma aldeia e nos casamentos realizados entre eles. Na Parte 3, evidencio como os distintos grupos familiares korubo pedem, trocam e compram, relacionando-se com as mercadorias industrializadas e o dinheiro.
Quais foram as conclusões?
A tese argumenta que o contato é um processo que cria distinções espaciais e temporais entre pessoas, relações e objetos. O contato tem efeitos diversos sobre a vida dos povos indígenas. Ao mesmo tempo, os indígenas se engajam nesse processo interpretando e reinterpretando seus históricos de contato. Dizer que ‘os Korubo descobrem os brancos’ é mais que uma subversão do sentido que comumente damos ao termo ‘descobrir’. É sublinhar o interesse dos Korubo por novos desejos, convivências e tecnologias, e a reconstrução dos seus corpos a partir de novos alimentos, hábitos e conhecimentos.
1) Ao longo do período extrativista nessa porção da Amazônia, diferente de outros povos que trabalharam no sistema de aviamento, os Korubo guerrearam constantemente com os brancos, aproximando-se pontualmente para obter ferramentas de metal, o que gerava conflitos e mortes. Eles passaram a fugir cada vez mais e tornou-se difícil manter as malocas e roças. A Funai chegou à região nos anos 1970 e, em 1996, conseguiu fazer o primeiro evento de contato com um grupo familiar korubo. Em 2014, 2015 e 2019 também ocorreram eventos de contato com outros grupos familiares korubo. No total, foram seis eventos de contato (o ‘pluricontato’) que envolveram a participação de outros povos indígenas (como os Kanamari e os Matis), atuantes como intermediários e intérpretes entre os Korubo e o Estado. A relação dos Korubo com os brancos passou da hesitação conflituosa à busca por compreendê-los.
2) Após o pluricontato, criaram-se sobreposições espaço-temporais que se perpetuam atualmente. Os Korubo acionaram categorias de sua língua, utilizadas para se referir a algo ‘antigo’ e ‘novo’, para distinguir as pessoas contatadas em eventos diferentes. Aqueles contatados em 1996 se autodenominam ‘antigos’ em relação àqueles contatados em 2014, 2015 e 2019, considerados ‘novos’. Hoje, esses grupos familiares korubo estão construindo parentesco entre si, após anos vivendo separados em sub-bacias hidrográficas distintas. Vários casamentos realizados antes do pluricontato foram desfeitos para originar novos casamentos entre pessoas com diferentes tempos de contato (antigos-novos), configurando uma estratégia explícita dos Korubo operada via matrimônios. Essa estratégia tem como figura central uma matriarca, chamada Maya, protagonista do primeiro evento de contato com os brancos em 1996 e detentora de grande poder político entre os Korubo.
3) O interesse dos Korubo pelas mercadorias extrapola concepções ocidentais a respeito de uso e consumo, como a ideia de ‘necessidade material’. O Estado brasileiro por meio da Funai considera os Korubo como um povo de ‘recente contato’ e isso preconiza ações específicas, como um protocolo criado para regular o acesso deles às mercadorias industrializadas e ao dinheiro. Esse protocolo se baseia na ideia de que controlando o acesso dos indígenas às mercadorias e ao dinheiro, preserva-se a ‘cultura’. A etnografia mostra que os Korubo, em vez de ‘deixarem de ser índios’, estão colocando o dinheiro e as mercadorias a serviço de um projeto maior e atual: construir o parentesco entre diferentes grupos familiares que passaram a viver juntos após o pluricontato com o Estado.
Quem deveria conhecer os seus resultados?
Creio que a tese pode interessar não apenas aos antropólogos e indigenistas que atuam diretamente com esse tema, mas também a um público mais amplo. Ativistas, jornalistas e cineastas interessados na Terra Indígena Vale do Javari, que já foi alvo das lentes do fotógrafo Sebastião Salgado e de documentários, sendo os mais recentes “A invenção do outro” e “Vale dos Isolados: O Assassinato de Bruno e Dom”. Em geral, aos interessados nas causas indígenas e na preservação da Amazônia.
Referências
Albert, Bruce; Ramos, Alcida (Orgs.). In: Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: Editora UNESP, Imprensa Oficial do Estado, 2002.
Erikson, Philippe. La griffe des aïeux: marquage du corps et démarquages ethniques chez les Matis d’Amazonie. Paris: Peeters, 1996.
Gow, Peter. “The perverse child: desire in an amazonian subsistence economy”. Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 24, n. 4, 1989.
Kopenawa, Davi; Albert, Bruce. A Queda do Céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Vilaça, Aparecida. Quem somos nós: os Wari’ encontram os brancos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.
A imagem que ilustra este ‘Acadêmico’ é de uma maloca korubo. Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/Funai– Brasil.
Juliana Oliveira Silva é doutora e mestre em antropologia social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realiza pesquisa de campo etnográfica em regiões da Amazônia desde 2017. Fez a primeira etnografia junto aos Korubo de recente contato da Terra Indígena Vale do Javari (Amazonas, Brasil), com bolsa do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e financiamento de campo do “Legs Lelong en Anthropologie Sociale, de l’Institut des Sciences Humaines et Sociales du Centre National de la Recherche Scientifique”. Atuou como consultora da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Atualmente, é pós-doutoranda da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.