Victória Mello Fernandes
Como se constrói o “tipo social” do inimputável nos processos de execução criminal
Dissertação
Prender o outro, conter o louco: a constituição do inimputável entre papéis, verdades e movimentos
autora
orientadores
Melissa Mattos Pimenta; Fabio Mallart
Área e sub-área
Sociologia, Sociologia da violência, Conflitualidade, Direito e Cidadania
Defendido em
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) em 14/02/2023
Esta dissertação de mestrado, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). A pesquisa buscou responder como se constrói o“tipo social” do inimputável nos processos de execução criminal.
O trabalho contribui para o debate sobre saúde, segurança pública e a própria loucura enquanto fenômeno sociológico, especialmente considerando as intersecções postas na figura do “louco-criminoso”.
A qual pergunta a pesquisa responde?
A pergunta que guiou a pesquisa é como se constrói o“tipo social” do inimputável nos processos de execução criminal. Buscou-se entender como se constrói a trajetória jurídica, nas múltiplas práticas institucionais, através de processos criminais cujos sujeitos apenados são considerados inimputáveis. Nos processos, seguiu-se as seguintes peças: a denúncia, o julgamento, o requerimento do laudo, o atestado de insanidade mental, os laudos de verificação de periculosidade.
Por que isso é relevante?
A privação de liberdade é um fenômeno extremamente relevante para a compreensão das configurações da sociedade brasileira, especialmente se consideramos que a população carcerária do país é a terceira maior do mundo, com um total 837.443 (Sisdepen, 2022) sujeitos em regime fechado, semiaberto, aberto, provisório, medida de segurança e tratamento ambulatorial. Além disso, a compreensão das diferentes relações e manifestações da violência imprimida pelo sistema de justiça criminal é necessária para entender as (re)configurações da sociedade capitalista moderna-colonial.
Uma das formas de privação de liberdade se dá no manicômio judiciário, a partir da medida de segurança, pela captura e internação dos sujeitos classificados como inimputáveis. A partir da abordagem proposta, compreende-se que as classificações, que atravessam e fazem emergir esse sujeito fazem parte da história brasileira, renovadas através da colonialidade de poder e com bases nas formas histórico-estruturais do país. São pessoas que, majoritariamente, se encontram nas cidades do interior do Rio Grande do Sul e nas periferias urbanas. Desde os processos de transformação da colônia em sede da corte, assim como o fim da escravização, gerou-se uma mudança no ordenamento social brasileiro, que passou a buscar outras formas de desenvolver um controle social dos sujeitos, das sociabilidades e das doenças.
Resumo da pesquisa
Nas trajetórias jurídico-psiquiátricas das pessoas inimputáveis, é possível compreender que há uma convergência de relações sociais, principalmente, de exclusão, de marginalização e de estigmatização na sociedade brasileira, que são apropriadas pelos poderes e pelos saberes jurídicos e psiquiátricos ou psicológicos (Foucault, 2006) para classificar, ordenar e destinar sujeitos a uma sentença-diagnóstico.
Há uma hibridização fruto de cruzamento/sobreposição de poderes e saberes que demonstram funções sociais ligadas à repressão, ao controle e ao gerenciamento de populações marginais, especialmente marcadas por raça, gênero, classe, escolarização, entre outras classificações/marcadores sociais.
Ao longo do processo há um silenciamento do inimputável, o qual só é agenciado para demonstrar/confirmar argumentos dos saberes psi e jus. A análise da prisão-internação também expôs algumas das terapêuticas aplicadas como a alocação em zonas de espera (Arantes, 2014); o vai e vem entre instituições, unidades abertas e fechadas e triagem do manicômio judiciário; e a terapêutica do conter e medicar - para além do tratamento de saúde, em caso de não aderência e não estabilidade do preso-paciente.
Além disso, foi possível perceber que os presos-pacientes passam por uma trajetória de institucionalização, de não escolarização, de trabalhos precários, e de enfraquecimento de sociabilidades não só familiares, antes e durante a prisão-internação, o que dificulta a desinternação especialmente pela necessidade de pós-internação em Residenciais Terapêuticos (SRTs). Já a transferência para SRTs e vinculação aos CAPS, que dependem e podem ser custeadas pelo Estado, não são realizadas com celeridade, bem como os processos de curatela e de pleito de vaga.
Quais foram as conclusões?
A etnografia de documentos permitiu compreender o processo de execução penal como um espaço de relações que, concomitantemente, constituem a aplicação e o gerenciamento da pena-medida de segurança e uma forma de classificar e construir os sujeitos. A partir da conjunção de poderes e saberes, ressaltou-se seus aspectos constitutivos a partir da colonialidade de poder, o que permitiu uma leitura para além de um cruzamento de saberes independentes, deslocalizados, descorporificados, imparciais. Pelo contrário, esse cruzamento pode ser rastreado e entendido em suas construções narrativas que fazem parte da episteme e ontologia moderna, colonial e eurocentrada.
Os processos expõem duplas classificações dos inimputáveis, em princípio reconhece-se este encontro e cruzamento de relações sociais e saberes: a) psiquiátricos – sobre o louco e loucura, a partir de classificações formuladas sobre uma sintomatologia dos transtornos psíquicos e dos tratamentos indicados aos sujeitos; b) jurídicos – sobre a necessidade de punição daqueles que cometem crimes, e de seguridade social das pessoas.
Foi possível perceber a persistência de categorias classificatórias históricas, que fazem parte da constituição de “sujeitos” anormais (Foucault, 2010) e sujeições criminais-psiquiátricas que estão atreladas à construção do “outro” racializado, que é menor, desumano, perigoso e, por essa razão, necessita de controle e de punição, ou controle-punição, ao longo de sua vida, o que pode desembocar na sua inimputabilidade e internação em manicômios judiciários. Isso permitiu, ao longo da pesquisa, entender a indissociabilidade entre “outrificação”, a criação de um outro, para a afirmação daquele que não o é.
Quem deveria conhecer os seus resultados?
A pesquisa pode desempenhar um papel reflexivo em diversos espaços. Para pesquisadores, contribui para o debate sobre saúde, segurança pública e a própria loucura enquanto fenômeno sociológico, especialmente considerando as intersecções postas na figura do “louco-criminoso”
Pode também contribuir para operadores do direito, pois propõe uma reflexão sobre a prática jurídica e a punição de pessoas com transtornos mentais, apontando para a importância de se privilegiar a atenção integral à saúde e outras formas de tratamento para além da prisão-internação.
Profissionais dos saberes psi também encontrarão reflexões sobre as práticas psiquiátricas descontextualizadas, que colocam o modelo manicomial, o uso de psicotrópicos e a contenção medicamentosa como únicas abordagens viáveis.
Além disso, os resultados da pesquisa contribuem para organizações da sociedade civil, familiares e aliados do movimento antimanicomial que buscam abrangem disputar os rumos das políticas de saúde (mental) para todos, lançando olhar e incluindo o “louco-criminoso” e o manicômio judiciário nas pautas antimanicomiais.
Referências
Arantes, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo. Ed. Boitempo Editorial 2014.
Fanon, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: UFJF, 2019.
Foucault, Michel. O Poder Psiquiátrico. Ed. Martins Fuentes. 2006.
Foucault, Michel (Org). Os Anormais. Ed, WMF Martins Fontes; 2ª edição, 2010.
Lobo, Lilia Ferreira. Os Infames da História: Pobres, Escravos e Deficientes no Brasil. Ed. Lamparina, 2015.
Victória Mello Fernandes é doutoranda em sociologia, mestra em sociologia e cientista social (UFRGS). Atualmente é bolsista CNPq. Integra o Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania (UFRGS/CNPq), o Núcleo de Antropologia do Direito (USP/CNPq), o Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação e Conhecimento (UFRGS/CNPq) e o Projeto de Extensão PalavraMundo. Trabalha com temas da sociologia do direito, da violência com ênfase em estudos sobre privação de liberdade, educação em prisões, processos de criminalização, loucura e psiquiatria no Brasil e pensamento decolonial.