Mateus Dias, Rudi Rocha e Rodrigo R. Soares
Como o glifosato pode afetar a saúde humana em contextos rurais, no Brasil
Abaixo do rio: uso de glifosato na agricultura e seus impactos nos nascidos em populações vizinhas
Down the River: Glyphosate Use in Agriculture and Birth Outcomes of Surrounding Populations
autores
Área e sub-área
Economia, Economia da saúde
Publicado em
Review of Economic Studies em 06/02/2023
Esta pesquisa, publicada no Review of Economic Studies, documenta um impacto causado pelo uso do herbicida mais utilizado no mundo – glifosato – em indicadores de saúde ao nascer e mortalidade infantil de populações no entorno dos locais de uso. O enfoque do estudo é sobre os efeitos subclínicos da contaminação da água em áreas distantes dos locais em que o herbicida é originalmente aplicado.
O efeito causal é identificado com base em três pontos: na regulação que permitiu a introdução da soja geneticamente modificada no Brasil; nos ganhos potenciais de produtividade gerados pela adoção da soja geneticamente modificada ao nível municipal e na forte complementaridade entre esse tipo de soja e glifosato; e na direção do fluxo de água dentro de cada bacia hidrográfica.
É estimada uma deterioração significativa dos indicadores de saúde ao nascer em populações a jusante dos locais em que os ganhos potenciais gerados pela adoção de soja geneticamente modificada são maiores – e que, portanto, são os locais de maior probabilidade de adoção de tal tecnologia. Com base na especificação principal do estudo, o aumento médio do uso de glifosato na amostra de municípios entre os anos de 2000 e 2010 causou um aumento na taxa de mortalidade infantil igual a 5% da taxa média no período.
A qual pergunta a pesquisa responde?
O glifosato é um herbicida vastamente utilizado em todo o mundo, a ponto de ser o herbicida mais utilizado na história. Inicialmente, o glifosato era utilizado principalmente como um dessecante. Entretanto, com o desenvolvimento da soja geneticamente modificada em meados dos anos 1990, o uso do herbicida foi significativamente intensificado. Isso ocorreu porque essa variedade de soja transgênica é resistente à ação do glifosato, o que facilitou substancialmente o controle de ervas daninhas e gerou importantes ganhos de produtividade. Entretanto, pouco se sabe sobre os efeitos do glifosato sobre a saúde humana, particularmente em contextos fora de laboratórios. A maior parte das evidências nesse sentido são estudos correlacionais, que não necessariamente indicam uma relação de causa e efeito entre glifosato e indicadores de saúde.
De modo a dar um primeiro passo nessa direção, o trabalho responde à seguinte questão: qual o efeito do uso do glifosato sobre indicadores de saúde ao nascer e mortalidade infantil de populações que entram em contato com o herbicida longe dos locais de uso, via contaminação da água?
Por que isso é relevante?
Após o advento da soja geneticamente modificada, o uso de glifosato cresceu substancialmente no mundo todo, em torno de quinze vezes. No Brasil, um dos principais produtores mundiais de soja e onde o glifosato é responsável por cerca de 60% do uso total de herbicidas e 35% do uso de agrotóxicos em geral, o uso triplicou entre 2000 e 2010. Apesar do uso maciço de glifosato, pouco se sabe sobre os efeitos da substância sobre a saúde humana. Tradicionalmente, o glifosato é considerado uma substância de baixa toxicidade e baixo risco de contaminação ambiental, tendo como base estudos feitos quando do desenvolvimento do herbicida. Contudo, trabalhos científicos mais recentes começaram a colocar tais considerações em xeque.
Trabalhos de laboratório passaram a encontrar efeitos negativos sobre células placentárias. Outros trabalhos identificaram a presença de glifosato em águas longe dos locais de aplicação em concentrações relevantes. Por fim, evidências científicas em contextos não-laboratoriais específicos (e.g., Plano Colômbia) e evidências anedóticas (em especial de casos judiciais contra fabricantes de herbicidas a base de glifosato) sugerem que é possível que o glifosato tenha uma toxicidade maior do que a que se considerava anteriormente.
Diante dessas novas evidências, há atualmente considerável discussão acerca da permissão do uso do glifosato. O herbicida está sob particular escrutínio na Europa, uma vez que a permissão de uso de cinco anos expirou ao fim de 2022 e foi concedida uma extensão de apenas um ano. Entretanto, para que decisões regulatórias desse tipo possam ser tomadas de forma a atender os interesses da população da melhor maneira possível, é necessário que se tenha um conhecimento sólido acerca dos benefícios e malefícios relacionados ao uso de glifosato, particularmente quando utilizado em um contexto agrícola. Este estudo dá um primeiro passo nessa direção.
Resumo da pesquisa
Em meados da década de 2000, a soja geneticamente modificada resistente a glifosato foi liberada para plantio no Brasil. Uma vez que essa variedade de soja transgênica é altamente complementar ao uso de glifosato, a liberação pode ser utilizada como um experimento natural que gera um aumento no uso de glifosato. Além disso, há também uma variação geográfica no aumento do uso de glifosato: as áreas em que o aumento foi maior devem ser justamente as áreas em que a soja geneticamente modificada foi adotada de forma mais generalizada.
A ideia básica consiste em utilizar essas duas dimensões de variação – geográfica e temporal – para estimar o efeito do glifosato sobre indicadores de saúde. O estudo foca em indicadores de saúde ao nascer, como taxa de nascimentos de baixo peso, taxa de nascimentos prematuros e mortalidade infantil, uma vez que o período e local de exposição para crianças de até um ano de idade são muito mais simples de se determinar. Considerar pessoas mais velhas implicaria a necessidade de determinar o histórico de residência de cada pessoa e a exposição em cada um desses locais. O trabalho se concentra nos municípios das principais regiões produtoras de soja no Brasil – Centro-Oeste e Sul – no período entre os anos de 2000 e 2010. Ademais, o foco do estudo é sobre os efeitos subclínicos do glifosato, e não sobre os efeitos do uso sobre as pessoas que são diretamente expostas à substância quando da sua aplicação. Em relação ao estabelecimento da relação de causa e efeito, há dois desafios típicos na estimação de efeitos causais de agrotóxicos em geral sobre saúde.
O primeiro desafio diz respeito ao fato de que a adoção da soja transgênica é muito provavelmente correlacionada à saúde da população por outras vias que não os potenciais efeitos de glifosato sobre a saúde. O estudo soluciona este problema de endogeneidade ao se apoiar na variação da adoção gerada pela combinação do timing da liberação da soja transgênica e do potencial ganho de produtividade da adoção dessa variedade de soja. Essas variações são relacionadas apenas a aspectos políticos do país como um todo (no caso da liberação da soja transgênica) e características do solo e climáticas (no caso dos ganhos de produtividade), e, portanto, não devem ser correlacionadas com outras variáveis que também poderiam afetar indicadores de saúde por outras vias (como, por exemplo, o nível de empreendedorismo local). O segundo desafio ao estabelecimento de uma relação causal entre glifosato e indicadores de saúde está relacionado ao fato de que o uso de glifosato gera um aumento de produtividade local. Isso certamente é refletido em aumento de renda, o que também impacta a saúde da população local.
O estudo lida com essa questão considerando, para cada município, o efeito de variações no uso de glifosato em locais dentro da mesma bacia hidrográfica, mas apenas a montante do município. Isso pressupõe que o contato com glifosato se dá através do contato com água contaminada e permite que a estratégia empírica seja testada: se a estratégia estiver correta, o uso de glifosato a jusante do município não deve afetar os indicadores de saúde considerados desse município – o que é verificado nos resultados. O trabalho também apresenta uma série de exercícios adicionais para reforçar as evidências de que os efeitos encontrados são, de fato, associados ao uso de glifosato. Em particular, o estudo apresenta evidências de que o efeito é associado a cursos d’água e a algo que é carregado do solo para dentro da água. Também são apresentadas evidências de que os efeitos são associados à expansão da produção de soja, não a uma expansão generalizada da atividade agrícola ou um resultado de uma correlação espacial espúria. Finalmente, são apresentados exercícios empíricos que apontam que os efeitos encontrados não são resultado de uma outra forma de contaminação da água relacionada à expansão da soja.
Quais foram as conclusões?
Os resultados indicam uma deterioração significativa de indicadores de saúde ao nascer e mortalidade infantil em áreas a jusante dos locais em que o uso de glifosato é esperado ter crescido mais (uma vez que tais locais são aqueles em que a adoção de soja transgênica geraria maiores ganhos potenciais de produtividade). Especificamente, são estimados aumentos estatisticamente significantes na taxa de mortalidade infantil, na incidência de nascimentos prematuros e na proporção de nascimentos de baixo peso. De acordo com a especificação principal, o aumento médio do uso de glifosato na amostra causou um aumento na taxa de mortalidade infantil correspondente a 503 mortes a mais por ano no período de 2004 a 2010. Como o trabalho se concentra apenas em áreas distantes dos locais de aplicação e em indicadores de saúde de crianças com menos de um ano de idade, esse resultado é possivelmente apenas uma parte da externalidade total causada pelo uso de glifosato sobre a saúde humana. Esses resultados contribuem significativamente para a literatura ao apresentar evidências de que o glifosato pode afetar a saúde humana em contextos em que o herbicida é tipicamente utilizado, complementando as evidências laboratoriais mais recentes.
Além disso, o caso da soja no Brasil deixa particularmente clara a tensão que existe entre os ganhos e as perdas geradas pela adoção de soja geneticamente modificada. Por um lado, há um ganho de produtividade bastante significativo, que afeta positivamente a população do local onde se dá a adoção da tecnologia. Por outro, o aumento no uso de glifosato gera efeitos negativos sobre a saúde de uma população muito maior, com a possibilidade de afetar áreas muito distantes dos locais de aplicação de glifosato e que não são afetadas pelos ganhos de produtividade. Como esses efeitos negativos sobre saúde não eram conhecidos quando as diversas regulações existentes no mundo foram desenhadas, os resultados do trabalho apontam para a necessidade de se rediscutir tais marcos regulatórios de forma a manter os ganhos de produtividade associados com o glifosato e limitar ao máximo os efeitos negativos sobre a saúde.
Quem deveria conhecer os seus resultados?
Agentes responsáveis por políticas públicas nas áreas de saúde e ambiental, membros de agências envolvidas na regulação de agrotóxicos, e pesquisadores e ONGs das áreas ambiental e de saúde.
Referências
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Mateus Dias é professor assistente na Católica Lisbon School of Business and Economics. Possui PhD em economia pela Universidade de Princeton e mestrado em economia de empresas pela Escola de Economia de São Paulo – FGV. Sua pesquisa é concentrada no campo da economia da saúde, desde seus aspectos relacionados com desenho e organização de mercado até os efeitos que políticas públicas diversas têm sobre a saúde da população em geral.