A política criminal dos governos FHC (1995-2002) e Lula (2003-2010)

Pedro de Almeida Pires Camargos

Dissertação

Guerra ao crime organizado e política criminal nos Governos FHC e Lula: entre os processos de neoliberalização e as hibridizações da guinada punitiva brasileira

autor

Pedro de Almeida Pires Camargos

orientador

Laurindo Dias Minhoto

Área e sub-área

Sociologia, Sociologia da punição, Sociologia jurídica

Defendido em

Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo em 27/01/2022

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A história política recente do Brasil é marcada por um paradoxo: apesar do processo de transição democrática e da aprovação de uma Constituição marcada pela garantia de direitos, o padrão de violação de direitos humanos da atuação estatal contra grupos marginalizados da população permaneceu a regra no país – e, em alguns casos, fortaleceu-se. O principal exemplo é o crescimento exponencial das taxas de encarceramento.

Esta dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo analisou como a construção política e social da figura do chamado “crime organizado” como principal inimigo interno a ser combatido no país impactou a atuação dos governos FHC (1995-2002) e Lula (2003-2010), na área de segurança pública.

A qual pergunta a pesquisa responde?

Como a construção política e social da figura do chamado “crime organizado” como principal inimigo interno a ser combatido no país impactou a atuação do Governo Federal, ao longo do período estudado, na área de segurança pública?

A partir desta pergunta norteadora, foram levantadas, também, as seguintes questões: (1) Quais as relações das políticas de “guerra ao crime organizado” no Brasil com o contexto internacional de “guerra às drogas” e de “guinada punitiva” neoliberal verificado a partir do final do século 20? (2) Quais discursos, lógicas e racionalidades estiveram em disputa na elaboração da política criminal pelas administrações estudadas? (3) Quais as diferenças e semelhanças entre a atuação do governo FHC e do governo Lula? (4) As políticas criminais do Governo Federal relacionam-se com o aumento dos níveis de punitividade no país verificado no período, sobretudo com a emergência do encarceramento em massa?

Por que isso é relevante?

A história política recente do Brasil é marcada por um paradoxo: apesar do processo de transição democrática e da aprovação de uma Constituição marcada pela garantia de direitos, o padrão de violação de direitos humanos da atuação estatal contra grupos marginalizados da população permaneceu a regra no país – e, em alguns casos, fortaleceu-se. O principal exemplo é o crescimento exponencial das taxas de encarceramento: o índice de pessoas presas (por 100.000 habitantes) foi de 74, em 1992, para 136, em 2002, e para 260,2 em 2010 – em um crescimento que continuou, e alcançou, em 2021, 389 (Sisdepen, 2022; World Prison Brief, 2023).

Neste mesmo período, a atuação de grupos ligados a mercados ilegais se consolidou nas cidades e prisões do país. Foi nesse momento que o mercado ilegal de drogas passou a ser apontado como responsável pelo aumento da violência nas cidades, de modo que o tema passou a ganhar destaque no debate público e nas preocupações governamentais. Junto com isso, verificou-se a consolidação internacional – no contexto da guinada punitiva estadunidense – do crime organizado transnacional como um problema de segurança global e um dos grandes inimigos a serem combatidos na América Latina.

Contudo, a partir das respostas repressivas e encarceradoras adotadas no Brasil, os problemas identificados na análise apenas se fortaleceram nos anos seguintes, contribuindo para criar o atual ambiente em que as redes ligadas a mercados ilegais ganharam ainda mais força e influência, e a violência estatal chegou a níveis ainda mais inaceitáveis. Assim, a leitura do passado recente pode nos ajudar a entender como os supostos consensos securitários e repressivos baseados na construção de inimigos ajudaram a gerar diversos dos problemas na área de segurança pública vivenciados nos últimos anos.

Resumo da pesquisa

A partir de uma análise qualitativa em documentos, a dissertação mostra como a questão do chamado “crime organizado” – ainda que nunca plenamente definido nos discursos governamentais – emergiu nos EUA, e, em conjunto com a disseminação de um ideário neoliberal, ganhou relevância internacional no final do século 20. Aos poucos, a questão ganhou contornos específicos dentro da realidade brasileira e passou a condicionar uma renovada atuação do Governo Federal na área de política criminal.

A pesquisa mostrou que, no Brasil, as políticas de ambos os governos estudados ficaram marcadas por uma hibridização entre medidas que buscavam, por um lado, a garantia de direitos humanos, da democracia e de provisões sociais; e, por outro, apostavam no acirramento da violência estatal. Algumas medidas ilustram a questão: o Plano Nacional de Direitos Humanos de 1996, apesar de trazer avanços para área, trazia também a expansão carcerária e a modernização do aparato repressivo como formas de lidar com as novas ameaças à segurança. As diretrizes se materializaram, entre outras medidas, no financiamento da expansão carcerária, e no endurecimento de penas (Lei das Organizações Criminosas; Lei de Lavagem de Dinheiro); ao mesmo tempo em que eram tentadas esparsas medidas de diversificação penal (Lei dos Juizados Especiais Criminais e Lei das Penas Alternativas).

No governo Lula, a Lei de Drogas é o principal exemplo desta política de caráter híbrido, mas que intensificou a repressão. A despenalização do porte de drogas veio acompanhada de um aumento da pena para o crime de tráfico – justificada pela suposta necessidade de manter um combate duro ao chamado “crime organizado” – e tornou-se o maior instrumento legal de impulsão ao encarceramento em massa e de sua seletividade racista no país.

Quais foram as conclusões?

A pesquisa chegou a algumas conclusões relevantes. Em primeiro lugar, ela mostrou que apesar da preocupação democrática e de garantia dos direitos humanos que apareceram nos discursos em todo o processo de construção do problema do “crime organizado” no Brasil, a sua aplicação política prática, em ambos os governos estudados, deu um peso significativo para medidas repressivas e de enfrentamento militarizado. Mesmo dentro das hibridizações que marcaram os dois governos, o que se verificou foi que, em nenhum momento, medidas que contrariavam a lógica punitiva foram efetivamente tentadas: medidas como o desencarceramento ou a regulamentação dos mercados em que tais redes atuam foram deixadas de lado a partir do suposto consenso de que medidas duras seriam indispensáveis para lidar com a questão.

Além disso, a pesquisa mostrou como algumas das alterações penais verificadas no país estavam articuladas com a tendência global de incremento punitivo. Contudo, não se verificou uma simples importação de medidas de outros contextos: algumas diretrizes repressivas internacionais tomaram formas específicas à realidade brasileira ao serem internalizadas, de modo que contribuíram para uma intensificação de práticas locais históricas de exclusão e controle social violento. O suposto paradigma moderno, que se dizia voltado para um combate ""democrático” contra o “Crime Organizado”, se materializou concretamente nas ações violentas das forças policiais nas periferias e favelas do país, e no aumento do encarceramento, direcionado principalmente a jovens, pobres e negros, tradicionalmente rotulados como inimigos no Brasil. Tudo isso, cumpre notar, sem alcançar qualquer redução nas atividades das redes ligadas a mercados ilegais, que, ao contrário, fortaleceram-se durante o período estudado.

Quem deveria conhecer os seus resultados?

O trabalho traz contribuições para diversos setores da sociedade. Defensores de direitos humanos, movimentos sociais contra a violência estatal e organizações da sociedade civil podem apoiar-se nos resultados para desenvolver estratégias de resistência à maquinaria punitiva. Pesquisadores de diversas áreas – sobretudo sociologia, criminologia, direito, ciência política e relações internacionais – interessados pelo tema podem aproveitar a pesquisa para novos desdobramentos e aprofundamentos.

Além disso, o trabalho deve ser lido por formuladores de políticas públicas, legisladores, gestores de segurança pública e por profissionais do sistema de justiça criminal, pois os resultados podem fornecer elementos para uma atuação atenta às violências causada por este sistema e para a elaboração de políticas comprometidas com a efetivação dos direitos humanos.

Referências

Campos, Marcelo da Silveira. Pela metade: a lei de drogas do Brasil. São Paulo: Annablume, 2019.

Hinton, Elizabeth. From the war on poverty to the war on crime. Cambridge: Harvard University Press, 2016.

Minhoto, Laurindo Dias. Encarceramento em massa, racketeering de estado e racionalidade neoliberal. Lua nova, n. 109, p. 161-191, 2020.

Misse, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, p. 11-25, 2011.

Rodrigues, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatinos, 2012.

Simon, Jonathan. Governing through crime: how the war on crime transformed American democracy and created a culture of fear. London: Oxford University Press, 2007.

Telles, Vera da Silva. Hirata, Daniel Veloso. Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. Estudos avançados, v. 21, n. 61, p. 173-191, 2007.

Pedro de Almeida Pires Camargos é doutorando (2022 - ) e mestre (2022) pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (2017). É pesquisador do grupo Teoria dos sistemas e crítica social (CNPq/FFLCH/USP) e no Projeto de Pesquisa Governo da Segurança na Cidade Neoliberal (CNPq/FFLCH/USP).

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