Carolina Castellitti
O que a carreira de comissária de bordo mostra sobre a individualização feminina
Tese
A carreira de comissária de bordo na Varig: processos de autonomização feminina em contextos urbanos
autora
orientador
Luiz Fernando Dias Duarte
Área e sub-área
Antropologia urbana, Sociologia, Gênero
Defendido em
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, em 19/02/2018
A carreira de comissária de bordo (mais comumente conhecida como “aeromoça”), desde sua emergência até poucos anos atrás, exerceu um fascínio para homens e mulheres de todas as idades. Mistura de curiosidade, provocação e medo, essa “nova geração de mulheres” que trocou a cozinha primeiro, e o escritório depois, pelo corredor do avião, foi objeto de uma proliferação de representações, sonhos e ficções. Em uma época em que a aviação comercial proporcionava um serviço sofisticado e exclusivo, elas viraram um ícone de feminilidade, simpatia, cordialidade e “glamour”. Como todo ícone, essa imagem tensionava os extremos contrapostos da liberdade e da submissão, da cordialidade e da sedução, capturados pelas fabulações produzidas em torno a essas sorridentes e uniformizadas silhuetas.
A tese, publicada recentemente pela editora Telha sob o título “Anfitriãs do céu: carreira, crise e desilusão a bordo da Varig”, procurou analisar como as trajetórias de vida das comissárias de bordo da extinta Varig formam parte do processo de individualização feminina em contextos urbanos contemporâneos. Em diálogo com uma corrente de estudos antropológicos brasileiros que dedicou bastante atenção às singularidades do individualismo como visão de mundo ou ethos, o trabalho procura tratar das dinâmicas do gênero, da classe social, da questão racial e do trabalho ou profissão, chamando a atenção para a inexorabilidade do coletivo e do individual, do social e do pessoal.
A qual pergunta a pesquisa responde?
A preocupação com a falta de autonomia das mulheres e as expectativas depositadas na renda e no espaço próprios foram palavras de ordem do chamado feminismo da primeira onda, magistralmente defendidas no famoso ensaio de Virginia “Um teto todo seu”. Em nossos dias, essa independência, mesmo quando conquistada, é carregada de ambiguidades. Além dos múltiplos desafios que se impõem à diversidade de experiências femininas, a independência pode significar um alto custo em termos de tarefas, responsabilidades, expectativas dos demais e de si mesmo. Nessa direção, a pesquisa procurou responder à pergunta sobre os significados do indivíduo, da independência e da autonomia, a partir de trajetórias profissionais atravessadas por hierarquias de gênero, classe e raça.
Por que isso é relevante?
Em diálogo com o movimento feminista, as ciências sociais vêm desde algumas décadas indagando o papel das mulheres no mundo do trabalho, os obstáculos enfrentados dentro e fora do âmbito laboral para ascender a posições de liderança, a acumulação de duplas e triplas jornadas, a persistência de formas de discriminação e violência, entre outras questões relativas à desigualdade de oportunidades ainda vigente em nossas sociedades. Uma forma comum de estudar essas dinâmicas a partir de dados empíricos relevantes é por meio da análise de fontes estatísticas nacionais e regionais (como o Censo e a Pnad), identificando as mudanças na distribuição de homens e mulheres em cada tipo de ocupação e cargo.
Sem desconhecer seu valor para estudos comparativos e históricos de grande alcance, esse tipo de desenho metodológico não nos permite explorar os sentidos, expectativas, dificuldades e frustrações dos distintos tipos de mulheres no seu cotidiano. O enfoque etnográfico privilegiado nesta pesquisa nos permite reconhecer as propriedades específicas dos sujeitos envolvidos, seus pontos de vista e identidades, de uma forma dinâmica e relacional, levando em conta as mudanças subjetivas e do contexto, na interação constante entre o indivíduo e a sociedade.
Resumo da pesquisa
O objetivo da pesquisa foi explorar como as trajetórias de vida das comissárias de bordo da extinta Varig formam parte do processo de individualização feminina em contextos urbanos contemporâneos. Através de entrevistas biográficas com mulheres que pertenceram a essa companhia entre 1970 e 2006, o trabalho reconstruiu essas trajetórias desde o afastamento do núcleo familiar de origem até as últimas instâncias de uma promissora carreira, caracterizada pela estabilidade financeira, a aventura e o “glamour”. Acompanhando as narrativas com a análise de documentos históricos (artigos de jornais, depoimentos, fotografias e objetos), foram também examinadas as dinâmicas institucionais da companhia, como o tipo de relações laborais implementado, e o papel das comissárias nas estratégias comerciais e publicitárias da empresa. Cara ao enfoque privilegiado, a relação entre o projeto profissional, o casamento e a maternidade, foi abordada considerando as características tão particulares deste universo, onde a ausência da mulher do próprio lar podia se estender por períodos prolongados e distâncias inalcançáveis.
A falência da companhia, narrada como um forte “baque”, representou uma bifurcação biográfica na vida dessas fiéis funcionárias. Os movimentos biográficos posteriores dependeram de disposições (capitais, afetos e valores) variáveis, e foram denominados adaptação, reconversão e renúncia. Produto de relações de trabalho perduráveis e da luta pelos direitos trabalhistas e previdenciários negligenciados, a sociabilidade atual desses ex-colegas foi analisada a partir de uma etnografia levada a cabo por espaços de recreação e luta frequentados por essas pessoas na atualidade. A pesquisa conclui com alguns apontamentos sobre o modo como independência, autonomia e gênero se interconectam neste particular setor das camadas médias metropolitanas.
Quais foram as conclusões?
A carreira de comissária de bordo representa um caso muito específico do mundo do trabalho, com dinâmicas que respondem a um setor dos serviços caracterizado – pelo menos na segunda metade do século 20 – pela exclusividade e o requinte, uma forte hierarquia e uma disciplina laboral herdadas do universo militar, e o “glamour” e a feminilidade que o marketing empresarial se encarregou de produzir e explorar. Fruto das condições urbanas das grandes metrópoles contemporâneas, do aumento quantitativo e qualitativo do quadro de alternativas ou horizonte de possibilidades, a escolha pela carreira surge, nos relatos, como uma possibilidade um tanto insólita de fazer algo novo e diferente. Embora exista certa diversidade de origens sociais e trajetórias de classe, a inclinação pelo perfil “sulista” é justificada pela origem da companhia. Entre as comissárias, a consciência de certos mecanismos de segregação, principalmente durante o processo seletivo, debatia-se com a convicção de que a empresa lidava diplomaticamente com uma desigualdade que a transbordava.
Através de um rigoroso processo seletivo e de um exigente curso de formação, a companhia inculcava uma retórica corporal eficaz na transmissão do prestígio e da sofisticação que eram sua marca registrada. Assim, as comissárias, cara visível da companhia, formavam parte da estética do desenvolvimentismo e do cosmopolitismo que a empresa procurava capturar. Superados os desafios dos anos iniciais, “virar mulher na Varig” significava assumir um compromisso de dedicação incondicional, que a empresa premiava com benefícios e garantias para elas e seu grupo familiar. Descobrindo uma apaixonante profissão, elas descobriam-se enquanto pessoas com determinadas características, como saber lidar com o público, ter um senso de humor instantâneo, ser comunicativa e refinada; conquistavam uma independência financeira e uma “confiança” em si mesmas que antes desconheciam. O custo, principalmente para as mães, era aprender a conviver com a ausência e o desapego.
Para essas fiéis funcionárias que ficaram até o final, “a orquestra do Titanic”, a falência representou um “baque”, uma bifurcação biográfica vivida como um trauma e uma grande desilusão. Na raiz das transformações subjetivas analisadas está a antecipação do fim da carreira provocada pelo fim da Varig, que acabou com a ancoragem identitária viabilizada pelo status profissional público, inundando de incerteza e precariedade as vidas daqueles que passavam longas jornadas no céu, mas tinham na companhia um chão firme. Se a individualização é um meio para compreender mudanças na concepção da pessoa em termos de estilo de vida, autoimagem e formulação de projetos, uma interdependência forçada, condensada na expressão “dar preocupação” (quando, quem dava ajuda, passa a ser quem precisa ser ajudado), parece-me sintetizar bem o embaraço provocado pela nova posição. Apontaria a uma consciência da dependência, da necessidade do outro, adquirida em um momento de crise, frustração e desilusão.
Quem deveria conhecer os seus resultados?
O livro “Anfitriãs do céu: carreira, crise e desilusão a bordo da Varig” tem apelo para um público amplo, dentro e fora do mundo acadêmico. Deixando de lado os estereótipos comuns sobre o mundo da aviação, recupera a história de mulheres de carne e osso, dos sonhos, alegrias e tristezas de uma fantástica profissão. Ao mesmo tempo, o olhar sobre essas trajetórias é ancorado no presente, inspirando reflexões sobre as transformações contemporâneas do mundo do trabalho, e as emoções e subjetividades atreladas às dinâmicas da carreira e da profissão.
Referências
Bourdieu Pierre. (2003), A miséria do mundo. São Paulo, Vozes.
Duarte, Luiz Fernando Dias; Gomes, Edlaine de Campos. (2008), Três famílias: identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro: Editora FGV.
Elias, Norbert. (2001), A Sociedade de Corte: Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Hochschild, Arlie Russel. (1983), The managed heart. Commercialization of human feeling. Berkeley, University of California Press.
Hughes, Everett C. (1984), The Sociological Eye: selected papers. New Brunswick: Transaction.
Carolina Castellitti é doutora em antropologia social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Argentina, graduada em sociologia, fez um intercâmbio acadêmico na Unicamp (Universidade de Campinas) durante a graduação, pelo programa da AUGM (Associação de Universidades do Grupo Montevidéu). Desde a graduação, vem pesquisando sobre família, gênero, carreiras, subjetividades e memórias. Também fez consultoria sobre gênero e desenvolvimento social, é atleta de hóquei na grama do Carioca Hóquei Clube, tradutora e professora de espanhol. Atualmente realiza um estágio de pós-doutorado no PPGAS do Museu Nacional, como bolsista da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro).