Jaciane Milanezi LATTES
A gestão da saúde da população negra em unidades básicas de saúde
Tese
Silêncios e confrontos: a saúde da população negra em burocracias do Sistema Único de Saúde (SUS)
autora
Área e sub-área
Sociologia, Diferenças e desigualdades sociais
Defendido em
UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), PPGSA (Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia), em 20/02/2019
Esta tese de doutorado, defendida na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), investigou como unidades básicas de saúde da cidade do Rio de Janeiro implementaram a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, conjunto de ações para promover a equidade racial no SUS (Sistema Único de Saúde), legalizada pelo governo federal em 2009.
A pesquisa constatou que há uma desconexão entre as normas voltadas à saúde da população negra e a quase ausência de práticas cotidianas de equidade racial em unidades básicas de saúde. Identificou-se também que os profissionais de saúde mobilizam repertórios concorrentes para implementar ações de equidade localmente, desde o engajamento à resistência a proposta da saúde focalizada nas populações negras e podem reproduzir desigualdades de raça, gênero e classe ao classificarem moralmente os usuários como “difíceis” em função da vulnerabilidade social dos mesmos.
A qual pergunta a pesquisa responde?
Como a PNSIPN (Política Nacional de Saúde Integral da População Negra) chegou, foi recepcionada e gerida em burocracias locais do SUS (Sistema Único de Saúde), organizações distantes das burocracias que institucionalizaram essa política?
Desde a redemocratização, práticas burocráticas visíveis de equidade racial estão sendo implementadas nas administrações públicas. Essas são as leis, decretos, resoluções, planos operativos, relatórios, publicações, estatísticas, instâncias de gestão, conferências. Eu as considero um conjunto de políticas que institucionalizam a focalização da saúde nas populações negras, práticas construídas a partir do ativismo de mulheres negras junto ao Estado. Políticas afirmativas no SUS são chamadas de focalização ou ações de equidade racial.
O resultado mais visível desse processo é a PNSIPN, instituída pela portaria n. 992 do Ministério da Saúde, de 13 de maio de 2009. Essa foi a questão central que guiou a pesquisa de doutorado. Em específico, investiguei como a PNSIPN foi implementada em três unidades básicas de saúde com ESF (Estratégia Saúde da Família), em territórios urbanos racialmente segregados no município do Rio de Janeiro (RJ).
Por que isso é relevante?
É relevante analisar a implementação de políticas públicas construídas para diminuir desigualdades raciais entre diferentes níveis burocráticos, pois uma política não se encerra em seus aspectos normativos nem é gerida por um único nível. Nesse ponto, a tese contribui com a análise sobre como a institucionalização da PNSIPN ganhou contornos diferentes dos objetivos oficiais na medida em que se distanciava dos níveis que a institucionalizaram.
É importante entendermos mais aspectos qualitativos das desigualdades raciais. Há motivos para comemorar a diminuição das desigualdades em saúde desde a redemocratização. Contudo, elas são persistentes entre brancos e negros ao longo do tempo. Precisamos entender como a desigualdade é cotidianamente gerida pelo Estado e vivida pelos grupos de raça/cor, inclusive quando eles se tornam usuários de políticas de diminuição das desigualdades, como é o caso da ESF.
Nesse aspecto, a tese colabora com a análise de repertórios de ação perante políticas públicas e de categorias nativas de usuários que existem nessas unidades. Em relação aos repertórios, a pesquisa identificou que os quadros burocráticos reagem às políticas públicas criadas. Eles podem contribuir à contínua implementação do normatizado ou dificultá-la. Em relação ao processo de categorização, ele está articulado a visões amplas e estereotipadas da sociedade sobre pobres e reprodução feminina, por exemplo. As categorias tinham potencial para gerar distinções simbólicas e acesso desigual aos serviços, a exemplo da categoria “difíceis”. Essa categoria significava usuários considerados difíceis de serem cuidados, em função das suas condições sociais e de comportamentos reprováveis perante as regras da ESF.
Resumo da pesquisa
Desde a redemocratização, o Estado passou a reconhecer o problema racial brasileiro e a institucionalizar políticas visando a diminuir desigualdades raciais entre brancos e negros. Em comparação a períodos anteriores, esse reconhecimento e essas políticas ganharam escala, visibilidade e normatização. O caso da saúde pública é emblemático, pois retrata o que a literatura sobre relações raciais (Omi e Winant, 1986) evidencia desde a década de 1980: é na trajetória de relações entre os movimentos sociais e o Estado que essas políticas se institucionalizam. Pouco tinha sido estudado sobre a reverberação dessa institucionalização em burocracias do SUS distantes das que institucionalizaram essas ações, o que a literatura chama de burocracias do guichê (Dubois, 2010).
A pesquisa analisou a continuidade e a descontinuidade da implementação da PNSIPN ao descer o nível do Estado. Também identificou a construção de categorias locais que diferenciavam os usuários e possibilitavam diferentes acessos aos serviços. Outra perspectiva central do trabalho foi a análise do Estado pelas administrações consideradas “banais” (Vianna, 2013). Elas são práticas menos visíveis se comparadas às legislações, mas consequentes aos usuários, a exemplo das categorias informais que os distinguem como mais merecedores dos serviços (Lotta e Pires, 2020). Com base na literatura sobre repertórios de ação (Swidler, 1986), foi possível evidenciar nas unidades pesquisadas dois repertórios à proposta da saúde da população negra: a resistência e o engajamento. As estratégias metodológicas da pesquisa foram três: documentos de Estado, etnografia de três unidades de saúde (2015 a 2017) e 57 entrevistas em profundidade com profissionais da saúde pública que trabalhavam nessas burocracias.
Quais foram as conclusões?
Nessas três unidades, ocorreu uma desconexão entre a massividade de normas e a quase ausência de práticas cotidianas de equidade racial. O preenchimento do quesito raça/cor dos usuários era o expediente mais presente e considerado incômodo. Ele era mais compreendido como uma prática discriminatória e menos um expediente de equidade. Mas, existiam práticas menos visíveis que regulavam a saúde de negros e negras, como o silêncio organizacional em relação aos efeitos da raça na saúde e à PNSIPN. O silêncio indicava resistência à política por desconhecimento, pela etiqueta racial brasileira de não se falar em raça e pela política ser considerada racista pelo quadro de funcionários das unidades.
O silêncio era central ao repertório de resistência à saúde focalizada mobilizado por parte do corpo burocrático. Mesmo que esse repertório tenha variado entre uma disposição para se falar em saúde de pessoas negras e a completa negação do tema, o efeito comum foi a descontinuidade da política. Em contraste à resistência, identifiquei outro repertório, o engajamento. Ele se revelou oposto ao anterior, cujos elementos eram a abertura à ideia da focalização, a reflexão interseccional sobre desigualdades e a criação de práticas particulares de equidade não protocolares.
Observei situações institucionais de discriminação. Em ambientes organizacionais pouco estruturados à equidade racial, essas situações reincidiram em mulheres, negras, pobres e consideradas “difíceis” nas unidades. A figura do cadastrado difícil foi central para compreender como desigualdades podem ser reproduzidas nessas burocracias sem que as organizações nomeiem a raça. Os usuários que mais receberam esse status viviam na pobreza, eram negras, não conseguiam cumprir seus cuidados em saúde conforme as regras da ESF por suas condições sociais e eram culpados pelos serviços não serem executados.
Quem deveria conhecer os seus resultados?
Todos interessados em desigualdades raciais e políticas públicas voltadas para diminuí-las, seja a sociedade civil organizada, os gestores públicos e os pesquisadores desses campos. Os resultados precisam ser conhecidos para melhoria das políticas afirmativas e ampliação das pesquisas sobre implementação dessas políticas em diversos níveis burocráticos. Muitas questões continuam em aberto, por exemplo: 1) como processos de institucionalização de políticas voltadas à diminuição das desigualdades ocorrem, também, a partir de burocracias locais? 2) como o atual debate público sobre desigualdades raciais proporcionado pela pandemia do novo coronavírus proporcionaria outros repertórios de ação perante políticas públicas de equidade racial nas burocracias? 3) como categorias de distinção de usuários são construídas em burocracias com expedientes formais de equidade racial?
Referências
DUBOIS, Vincent. The bureaucrat and the poor: encounters in French welfare offices. Aldershot: Ashgate, 2010.
LOTTA, Gabriela Spanghero; PIRES, Roberto Rocha Coelho. Categorizando Usuários “Fáceis” e “Difíceis”: Práticas Cotidianas de Implementação de Políticas Públicas e a Produção de Diferenças Sociais. Dados, Rio de Janeiro, v. 63, n. 4, 2020.
OMI, Michael; WINANT, Howard. Racial formation in the United States: from the 1960s to the 1980s. New York: Routledge & Kegan Paul, 1986.
SWIDLER, Ann. Culture in action: symbols and strategies. American Sociological Review, vol. 51, n. 2, p. 273-286, apr., 1986.
VIANNA, Adriana. O fazer e o desfazer dos direitos: experiências etnográficas sobre política. Rio de Janeiro: E-papers, 2013.
Jaciane Milanezi é doutora em sociologia pelo PPGSA (Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia) da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). É pós-doutoranda no IPP (Programa Internacional de Pós-Doutorado) do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em São Paulo, com bolsa da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). É pesquisadora do AFRO/Cebrap - Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial.